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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
07/11/2019 08/11/2019 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Warner
Duração do filme
151 minuto(s)

Doutor Sono
Doctor Sleep

Dirigido e roteirizado por Mike Flanagan. Com: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Cliff Curtis, Zahn McClarnon, Emily Alyn Lind, Selena Anduze, Robert Longstreet, Carel Struycken, Catherine Parker, James Flanagan, Met Clark, Zackary Momoh, Jocelin Donahue, Dakota Hickman, Roger Dale Floyd, Alex Essoe, Jacob Tremblay, Carl Lumbly, Bruce Greenwood e Henry Thomas.

(Este texto contém pequenos spoilers.)


De modo geral, continuações tendem a se apresentar como mera revisita aos elementos dos filmes que as originaram, já que, de um ponto de vista comercial, é mais seguro apostar em algo cujo sucesso foi comprovado nas bilheterias. Trata-se de uma estratégia populista, mas artisticamente estéril, apoiando-se na nostalgia em vez de na imaginação. Assim, assistir a algo como Doutor Sono é um alento, já que esta sequência de O Iluminado produzida quase 40 anos depois de seu lançamento não apenas se baseia em uma história interessante como busca expandir o universo que a ambienta e nossa percepção sobre seus personagens – o que não a impede de encontrar uma desculpa viável e instigante para também levar o público a uma nova viagem ao temível Overlook Hotel reimaginado por Stanley Kubrick a partir do livro de Stephen King.

Adaptado por Mike Flanagan a partir de um livro escrito pelo produtivo escritor norte-americano como uma alfinetada à produção de Kubrick (que ele notoriamente detesta), Doutor Sono retoma a história quase no ponto em que O Iluminado a deixou: de volta ao lar e ainda traumatizado com os eventos ocorridos no hotel, o pequeno Danny (Floyd) já não fala nada há algum tempo, preocupando sua mãe Wendy (Essoe) – uma condição que só muda quando o espírito do Sr. Hallorann (Lumbly) surge para ensinar o garoto a lidar com os espectros que insistem em perturbá-lo. Décadas depois, quando reencontramos o protagonista (McGregor), ele se tornou dependente de álcool e drogas ao mesmo tempo em que um grupo de nômades liderados por Rose The Hat (Ferguson) vem sequestrando, torturando e matando crianças “iluminadas”, atraindo a atenção da jovem Abra (Curran), cujo dom é ainda mais forte do que o de Danny quando criança.

Já de imediato, o conceito envolvendo os “vampiros de almas” (eles se batizam de O Nó) traz um novo ângulo à premissa básica – e, embora não tenha lido o livro, suponho que Flanagan correu um grande risco ao trazê-lo para a tela, já que é fácil imaginar aquelas criaturas, com seus figurinos estilizados e acampamento móvel, surgindo como uma trupe circense ou alguma caricatura similar. Em vez disso, porém, o filme evoca a cumplicidade entre seus integrantes e um sentimento autêntico de comunidade, ficando claro que não se enxergam como os monstros que são, mas como seres superiores que merecem a imortalidade e têm o direito de buscá-la de qualquer modo – e as performances contidas de Rebecca Ferguson (sua reação a uma imagem icônica de O Iluminado diz tudo sobre Rose) e Zahn McClarnon (que protagonizou aquele que considero o melhor episódio da série Westworld) dão o tom apropriado aos personagens, que mesmo assustadores exibem certo calor carisma inquestionáveis.

Ewan McGregor, por sua vez, adota uma postura tão natural diante dos eventos sobrenaturais que testemunha que se torna fácil, para o público, aceitar a realidade que rege aquele mundo – o que é instrumental, já que o roteiro não perde tempo com aquela chatice de trazer indivíduos que precisam ser convencidos de que há algo estranho acontecendo. Além disso, a gentileza presente em seu olhar garante que percebamos como até em seus momentos menos louváveis há doçura e bondade em Dan, cuja relação com a memória do pai é determinante na formação de sua personalidade e visão de mundo, algo que ele reconhece em um monólogo tocante durante uma reunião. Do mesmo modo, o diretor Mike Flannagan estreita nossa ligação com o sujeito ao nos mergulhar em sua subjetividade durante o primeiro ato, quando a câmera se move constantemente como se presa ao seu corpo, os efeitos sonoros nos atordoam e a trilha reflete sua angústia. Para completar, sua relação com Abra – vivida de forma segura e cheia de autoridade e força pela novata Kyliegh Curran – cria um centro afetivo importante no centro da narrativa, servindo como norte para toda a trama.

Esta afetividade, por sinal, se torna ainda mais relevante em função de todo o horror que Flannagan retrata e que tem seu ápice numa cena pavorosa (e por isso certeira) envolvendo um garoto interpretado por Jacob Tremblay. Por outro lado, quando o horror puro sai de cena, a atmosfera da narrativa é tomada pela melancolia e pela sensação de que algo ainda pior ocorrerá, sendo curioso notar também como o cineasta é hábil ao tornar o filme mais emocional do que o original enquanto retém a rigidez estética de Kubrick e que se interessava mais pela psicologia dos personagens do que necessariamente por seus sentimentos. Neste sentido, é compreensível que Flannagan adote os movimentos de câmera lentos e deliberados de O Iluminado, chegando a citar de modo escancarado alguns deles (como a rápida panorâmica que acompanha o deslocamento do machado ao ser brandido por alguém).

Outro detalhe significativo diz respeito aos corredores da parte residencial do Overlook Hotel, onde a família Torrance morou, e que aqui parecem mais estreitos e mais baixos, o que traz uma sensação de claustrofobia e sugere a impressão de alguém que, ao visitar um lugar em que morou na infância, se surpreende ao constatar como tudo parece menor do que lembrava.

Mas a essência temática de Doutor Sono pode ser encontrada – e não leia o restante deste texto caso não tenha visto o filme – na cena em que Dan reencontra Jack Torrance, que agora ocupa o posto de bartender do Overlook e ganha o rosto de Henry Thomas (quem imaginaria que o garotinho adorável de E.T. conseguiria incorporar tão bem a insanidade de Jack Nicholson?): numa conversa dolorosa que leva o filho a constatar como o pai se sentia preso e limitado pela família, descrevendo-a como “bocas que comiam tempo”, Doutor Sono expõe o alto preço que o alcoolismo de Jack cobrou àqueles que o amavam. Sim, os espíritos do hotel têm representação literal, com seus rostos assustadores e motivações destrutivas, mas são também símbolos dos demônios interiores que atormentavam Jack e, anos depois, o próprio Dan através do alcoolismo e da depressão - e poucas imagens poderiam expressar esta última de maneira mais apropriada do aquela que traz largas caixas contendo os algozes do protagonista e que ele tenta a todo custo manter trancados.

Pois cada aposento do Overlook Hotel guarda, no fundo, uma tristeza.

08 de Novembro de 2019

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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