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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
06/06/2008 01/01/1970 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
117 minuto(s)

Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto
Before the Devil Knows You´re Dead

Dirigido por Sidney Lumet. Com: Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Marisa Tomei, Rosemary Harris, Aleksa Palladino, Amy Ryan, Brian F. O´Byrne, Michael Shannon, Albert Finney.

Assim como ocorria nos ótimos Fargo e Um Plano Simples (dirigidos, respectivamente, pelos irmãos Coen e por Sam Raimi), os personagens deste Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto são pessoas comuns que, ao se encontrarem diante de um problema financeiro, investem numa solução que, apesar de amoral, soa simples o bastante para parecer viável – e é somente depois que tudo se complica terrivelmente (como as coisas na vida real tendem a fazer) que estes indivíduos patéticos parecem compreender a dimensão trágica assumida por suas ações, percebendo que, afinal de contas, jamais estiveram preparados para dominar apropriadamente a situação.


Escrito pelo estreante Kelly Masterson, o roteiro gira em torno dos irmãos Andy (Hoffman) e Hank (Hawke), que enfrentam graves problemas financeiros: enquanto o primeiro descobre, chocado, que a Receita Federal irá fazer uma auditoria na empresa da qual ele é o contador (algo preocupante, já que ele vem utilizando dinheiro da companhia para gastos pessoais), o segundo mal dá conta de pagar a pensão devida à agressiva ex-esposa, tornando-se ainda mais ansioso por querer atender aos constantes (e dispendiosos) desejos da filha pré-adolescente. É então que Andy propõe ao caçula um plano aparentemente à prova de falhas que, apesar de envolver um ato ilegal, não prejudicaria ninguém (a não ser, claro, uma empresa seguradora). Infelizmente, nada sai como o planejado e os irmãos se vêem diante de uma tragédia pessoal irreparável.

Adotando uma estrutura narrativa que investe numa cronologia quebrada, que retorna diversas vezes aos mesmos incidentes para mostrá-los a partir de pontos de vista diferentes, Antes que o Diabo Saiba busca desenvolver seus personagens justamente ao confrontar aspectos particulares das experiências de cada um diante das mesmas situações. Assim, se em determinado instante acompanhamos a angústia contida de Andy em um velório, logo vemos o desesperado pedido de ajuda que Hank faz à cunhada (e amante) pelo telefone – o que ilustra perfeitamente a dinâmica de um triângulo que consiste no desejo de Gina (Tomei) de compartilhar a dor do marido e sua frustração ao ser deixada de fora, o que a joga para os braços carentes do cunhado que, apesar de fazê-la se sentir desejada, não é realmente amado por ela.

Aliás, embora invista numa trama relativamente densa, é o desenvolvimento dos personagens que serve de centro dramático para o longa – incluindo-se, aí, até mesmo os personagens secundários como Gina. Observem, por exemplo, a expressão sempre apática, deprimida, que Tomei (cada vez mais linda) confere a esta mulher que, levando uma vida vazia que consiste em esperar os poucos momentos de verdadeira comunhão com o marido, só parece realmente viva ao discutir planos infantis de fuga para uma nova vida (sem perceber que seus problemas permanecerão intactos onde quer que ela esteja). Esta falta de perspectivas, aliás, oprime também seu amante Hank, cujas olheiras e tiques nervosos denotam um cansaço profundo e um sentimento inabalável de derrota diante do mundo – e nem mesmo a tarde de sexo que dividem parece deixá-los menos miseráveis. Sempre ansioso em função das exigências de sua raivosa ex-esposa (Ryan, corretamente antipática), Hank é um indivíduo obviamente inseguro que acaba tendo sua fragilidade explorada pelo irmão mais velho de maneira impiedosa.

O que nos traz, claro, a mais uma magnífica performance do sempre fascinante Philip Seymour Hoffman: quando vemos Andy pela primeira vez, no início do filme, ele surge admirando, em um espelho, o próprio desempenho ao transar com a esposa – e este momento define perfeitamente a motivação psicológica para tudo o que ocorrerá a seguir ao indicar o desejo do sujeito de enxergar-se sob uma luz romantizada, de viver uma vida que não é, nunca foi e jamais será a sua própria. Apenas posteriormente, diga-se de passagem, compreenderemos as feridas psíquicas que movem Andy nesta direção, quando, numa conversa dolorosa com o pai, ele expõe seu sentimento de inadequação (inclusive fisicamente) diante do restante da família. Desta forma, ao percebermos como Andy cresceu solitariamente e esmagado por inseguranças, sua fuga através das drogas e seus esforços para impedir a aproximação de qualquer um (até mesmo a esposa) se tornam mais compreensíveis, mesmo que não justificáveis. Além disso, o brilhantismo de Hoffman e sua profunda compreensão do personagem podem ser testemunhados no momento em que Andy, frustrado e pressionado de todos os lados, dá vazão a uma raiva solitária ao destruir o apartamento – mas, mesmo neste instante, ele ainda busca se conter e, em vez de atirar os objetos no chão, ele os derruba lentamente, numa explosão assustadoramente controlada.

Mas eu cometeria uma injustiça tremenda se não depositasse boa parte dos méritos do sucesso de Antes que o Diabo Saiba sobre os ombros admiráveis do veterano cineasta Sidney Lumet, já que não é à toa que performances fabulosas são uma constante até mesmo em seus trabalhos mais irregulares, indicando seu talento ímpar na direção de atores. Responsável por clássicos como 12 Homens e uma Sentença, Serpico, Um Dia de Cão e Rede de Intrigas, Lumet se mantém, aos 83 anos de idade, como um diretor que demonstra controle absoluto sobre a narrativa que desenvolve. Reparem, por exemplo, a calma com que ele acompanha Andy em um único e longo plano enquanto este caminha por um luxuoso apartamento e reparem como, desta forma, Lumet estabelece de maneira econômica a familiaridade do sujeito com aquele espaço e também seu desejo e frustração subjacentes diante daquele estilo de vida que tanto cobiça.

E mais: observem a rigidez do quadro que traz toda a família em volta da mesa enquanto Charles (Finney, numa performance sofrida) toma uma decisão pavorosa acerca do destino da esposa e percebam como todo o drama da situação pode ser percebido apenas pelo peso da composição de Lumet. Além disso, é interessante comparar como Hank e Andy são constantemente vistos próximos um do outro, na metade inicial da projeção, apenas para surgirem sentados em cantos opostos do quadro no terceiro ato, quando a tragédia desencadeada por suas ações afastou de vez os dois irmãos. E como não admirar o simbolismo da cena em que Andy esvazia lentamente um vaso no qual se encontravam várias pedras – especialmente quando comparamos esta sua ação ao discurso feito pouco antes sobre como ele não se considera uma “soma de suas partes”?

Tenso e angustiante, Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto traz o peso de tragédia grega que Woody Allen buscou com sucesso apenas moderado em O Sonho de Cassandra - e não deixa de ser desalentador que estes dois cineastas veteranos cheguem aos atos finais de suas vidas encarando o mundo como um lugar repleto de dor e crueldade. Mas creio que seria de um otimismo ingênuo esperar que, afinal de contas, o passar das décadas não trouxesse, consigo, um cinismo triste, realista e inevitável.

08 de Junho de 2008

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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