Datas de Estreia: | Nota: | ||
---|---|---|---|
Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
24/07/2009 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
140 minuto(s) |
Dirigido por Michael Mann. Com: Johnny Depp, Christian Bale, Marion Cotillard, David Wenham, Christian Stolte, Jason Clarke, Stephen Dorff, Channing Tatum, Rory Cochrane, Branka Katic, Emilie de Ravin, Leelee Sobieski, Stephen Lang, Giovanni Ribisi, Bill Camp, John Ortiz, Stephen Graham, Lili Taylor e Billy Crudup.
Em 1933, durante a Grande Depressão que seguiu o crash da bolsa de 1929, os norte-americanos, falidos e desesperançados, tiveram suas imaginações arrebatadas pela figura de uma espécie de Robin Hood que, usando metralhadoras no lugar de flechas, parecia vingar-se das instituições financeiras responsáveis pela crise ao roubar dos bancos ao mesmo tempo em que se recusava a tirar dinheiro dos clientes que se encontravam no local no momento do assalto. Isto, é claro, era uma fantasia: ao contrário do lendário arqueiro, o gângster John Dillinger (Depp) não tinha a menor intenção de distribuir os frutos de seus assaltos com a população miserável – e sua imagem romântica não passava disso: uma fachada cuidadosamente alimentada para evitar o repúdio da opinião pública enquanto desafiava abertamente a Lei. Assim, nos 13 meses seguintes à sua fuga da prisão, Dillinger e sua gangue (ou várias gangues) roubaram centenas de milhares de dólares enquanto eram perseguidos pela força-tarefa montada pelo igualmente lendário (e repulsivo) J. Edgar Hoover (Crudup), que escalou, como líder da empreitada, o determinado Melvin Purvis (Bale).
Co-escrito por Ann Biderman, Ronan Bennett e pelo diretor Michael Mann, Inimigos Públicos evoca, neste sentido, o embate de personalidades (e de diferentes lados da Lei) visto em outras obras do cineasta, como Manhunter, Fogo Contra Fogo e Colateral – com a diferença óbvia que, aqui, Mann tem a oportunidade de envolver sua narrativa em uma cuidadosa e evocativa recriação de época. Neste sentido, aliás, o primoroso design de produção de Nathan Crowley merece fartos elogios: dos imensos discos usados para registrar as conversas obtidas através de escutas telefônicas às maletas de madeira empregadas para o transporte do armamento pessoal dos personagens, Inimigos Públicos faz um registro impecável do início da década de 30, acertando ainda ao retratar a fria suntuosidade dos bancos assaltados por Dillinger, a impessoalidade burocrático dos escritórios do FBI e o calor elegante dos restaurantes e bordéis freqüentados pelos bandidos – o que é complementado brilhantemente pelos figurinos em cores sóbrias concebidos por Colleen Atwood, que ajudam a apresentar aqueles indivíduos quase como homens de negócios que, por acaso, costumam usar armas em vez de canetas.
Dando continuidade à sua velha parceria com Mann, o diretor de fotografia Dante Spinotti não só explora e expande as possibilidades do digital (algo que Mann fizera em Colateral e Miami Vice) como também parece fazer uma sutil homenagem ao Mestre da Escuridão, o lendário fotógrafo Gordon Willis, já que freqüentemente investe em composições que parecem pintar com as sombras exatamente como aquele fizera em tantos filmes (especialmente em O Poderoso Chefão, o que também se revela apropriado). Igualmente sutil, aliás, é o design de som do longa, que não só usa a trilha sonora de maneira econômica como ainda demonstra compreender o potencial do silêncio como forma de gerar tensão – e, assim como o já clássico tiroteio de Fogo Contra Fogo, aqui os inúmeros confrontos armados sempre impressionam não só pela secura dos disparos como também pelo realismo com que são coreografados.
Não que Mann não empregue a música quando julga necessário – e, somados aos enérgicos travellings que acompanham Dillinger e seus cúmplices durante os assaltos, os temas concebidos pelo compositor Elliot Goldenthal ajudam a conferir aos personagens uma aura icônica inquestionável que remete a outros mitos do banditismo cinematográficos (reais ou fictícios), como Bugsy Malone, Tony Montana ou Bonnie e Clyde. Mas o mais interessante é que o cineasta empresta suas próprias obsessões temáticas à figura clássica do gângster de chapéu de feltro e casaco longo, já que, assim como em vários dos filmes do diretor, os violentos homens vistos aqui são sujeitos que parecem sempre determinados a desafiar as convenções através de um não conformismo constante e inabalável, sejam eles “vilões” ou “mocinhos”.
Neste sentido, o John Dillinger de Johnny Depp nada mais é do que uma versão de época do Frank vivido por James Caan no magnífico Profissão: Ladrão ou do Neil McCauley interpretado por Robert De Niro no jovem clássico Fogo Contra Fogo – e o ator faz um trabalho excepcional ao interpretar o bandido não como um “gângster de Cinema” (algo que tantos outros bons atores acabaram fazendo), mas sim como um indivíduo complexo e real que, embora extremamente arrogante e presunçoso, se mostra sempre meticuloso ao verificar os estados de cada arma de sua gangue ou ao já deixar janelas entreabertas (prontas para permitirem sua fuga) ao ocupar um novo quarto. Evitando os (divertidos) excessos que costumam marcar suas composições habituais, Depp talvez pela primeira vez exibe sem distrações as marcas de expressão que, associadas às suas feições joviais, vêm tornando seu rosto cada vez mais interessante – e é admirável que ele evite velhas muletas de interpretação ao encarnar Dillinger como um sujeito geralmente impassível, já que, quando finalmente divisamos um rápido e leve sorriso ou uma ligeira explosão emocional, estes provocam um impacto que se torna ainda maior pelo contraste. Da mesma forma, é sempre um prazer perceber a economia com que um ator experiente transmite informações importantes sobre seu personagem – e percebam como, ao ser abraçado por um promotor ansioso para exibir sua famosa “presa” diante dos jornalistas, Dillinger anula completamente o gesto do sujeito ao pousar casualmente seu cotovelo sobre o ombro do outro.
Enquanto isso, Christian Bale, preso a um personagem ingrato (já que Purvis é um homem de obsessão única e, portanto, quase unidimensional), faz o possível para conferir alguma humanidade ao investigador – como, por exemplo, ao mostrar-se ofegante em função da ansiedade ao instruir seus subordinados imediatamente antes de um confronto com os bandidos. (E sua principal cena com Depp, quando ambos se encaram através das barras de uma cela, é perfeita ao demonstrar como nenhum daqueles homens se mostra disposto a abandonar a arrogância ou a confiança.) Já Billy Crudup tem mais espaço para brincar com seu J. Edgar Hoover graças à personalidade grandiosa do sujeito – e não deixa de ser divertido perceber como o roteiro inclui referências debochadas ao “segredo” de Hoover (que, muitos afirmam, gostava de se vestir de mulher) ao trazê-lo num leve flerte com Purvis (“Diga a ele que pode me chamar de J.E.”.). E se atrizes conhecidas como Lili Taylor, Leelee Sobieski e Emilie de Ravin surgem em pouco mais do que pontas, a bela Marion Cotillard (Piaf – Um Hino ao Amor) ao menos tem a oportunidade de estabelecer uma ótima – e importante – química com Johnny Depp, destacando-se especialmente ao exibir a vulnerabilidade corajosa de sua Billie em uma cena de tortura.
Infelizmente, porém, Inimigos Públicos se mostra menos cuidadoso na composição do restante do elenco secundário, já que os cúmplices de Dillinger e os assistentes de Purvis jamais se estabelecem de maneira marcante, gerando até mesmo certa confusão com relação às suas identidades (demorei a identificar, por exemplo, quem interpretava o importante Baby Face Nelson, julgando, durante boa parte da projeção, se tratar de Stephen Dorff, quando, na realidade, ele era vivido por Stephen Graham. E por mais que seja curioso constatar as pequenas aparições de gângsteres como Frank Nitti (o mesmo que é atirado do telhado por Kevin Costner em Os Intocáveis), este pano de fundo “histórico” acaba se diluindo e trazendo mais confusões do que benefícios reais à narrativa.
O que, no final das contas, acaba sendo mais do que compensado por cenas brilhantes como aquela (fictícia) em que Dillinger visita a sede da força-tarefa que o persegue e aquela (real) em que ele assiste a Vencido pela Lei antes de seu último confronto com a Lei. Esta cena, em específico, resume a beleza da sensibilidade de Michael Mann, que transforma este fato da vida do bandido em um instante de tocante epifania: encantado por ver uma versão de si mesmo na tela (até mesmo seu bigode remetia ao de Clark Gable), Dillinger parece transfixado pela imagem luminosa de Mirna Loy, enxergando-a claramente como uma projeção de sua amada Billie – e, neste instante, ele deixa escapar um raro e discreto sorriso de satisfação, como se concluísse que, mesmo terminando ali, sua breve e tumultuada vida teria valido a pena.
25 de Julho de 2009