Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
31/12/1995 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
171 minuto(s) |
Série Jovens Clássicos #03
Dirigido por Michael Mann. Com: Al Pacino, Robert De Niro, Val Kilmer, Tom Sizemore, Danny Trejo, Ashley Judd, Ted Levine, Diane Venora, Natalie Portman, William Fichtner, Amy Brenneman, Mykelti Williamson, Wes Studi, Dennis Haysbert, Tom Noonan, Kevin Gage, Hank Azaria, Jeremy Piven, Xander Berkeley e Jon Voight.
(Atenção: esta análise revela pontos importantes da trama do filme. E a propósito: todas as fotos podem ser ampliadas através de um clique.)
Alçados à fama praticamente ao mesmo tempo, Al Pacino (em O Poderoso Chefão, de 1972) e Robert De Niro (em A Última Batalha de um Jogador e Caminhos Perigosos, de 73) logo se tornaram figuras emblemáticas de um dos períodos artisticamente mais ricos do cinema norte-americano, oferecendo desempenhos marcantes em obras dirigidas por talentos como Sidney Lumet, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Elia Kazan, Brian De Palma e Norman Jewison. Porém, ainda que tenham dividido os créditos em O Poderoso Chefão Parte 2, o fato de seus personagens protagonizarem períodos distintos da trama impediu o tão esperado encontro dos dois gigantes – um momento que os cinéfilos só viriam a testemunhar (e, mesmo assim, brevemente) em 1995, no soberbo Fogo Contra Fogo, quinto trabalho na direção de Michael Mann.
Vivendo dois homens que, mais do que obcecados por suas profissões, utilizam o trabalho como forma de fugir da obrigação imposta por complicados relacionamentos pessoais, os atores se colocam em posições diametralmente opostas no que diz respeito à Lei, mas ironicamente similares na solidão com que conduzem suas vidas. Como o policial Vincent Hanna, Pacino encarna um homem cujos casamentos anteriores fracassaram terrivelmente e que se encontra no processo de arruinar mais um, ao passo que, como o ladrão Neil McCauley, De Niro segue uma regra auto-imposta de jamais estabelecer alguma ligação que não possa ser abandonada em 30 segundos (e, neste sentido, ele parece ter absorvido a lição duramente aprendida por James Caan no primeiro filme de Mann, o igualmente genial Profissão: Ladrão, de 81).
Levando existências melancólicas (algo refletido na bela trilha de Elliot Goldenthal), Vincent e Neil operam basicamente nas noites de Los Angeles, que o cineasta e o diretor de fotografia Dante Spinotti banham em luzes que, mais uma vez, se contrapõem à psique sombria dos personagens. Desta forma, a cidade se transforma não só no palco, mas numa personagem da trama, numa lógica narrativa e visual que Mann voltaria a adotar em Colateral, nove anos depois – e não é à toa que, na cena em que Neil procurar estabelecer sua primeira relação realmente significativa com uma mulher, o diretor mantém o casal em closes que, mesmo intimistas, não ocultam a presença luminosa de Los Angeles ao fundo, como se esta buscasse nos lembrar das ameaças e promessas que representa (e mais tarde, quando Neil revela sua linha de trabalho para a garota, que se coloca de costas para ele, rejeitando-o, a cidade surge apagada ao fundo depois de já ter cumprido seu propósito destrutivo). Aliás, Mann constantemente constrói, em Fogo Contra Fogo, quadros que transformam o cenário e as locações em verdadeiros símbolos, o que fica claro no plano em que Neil observa o mar (a liberdade, o futuro) através da parede de vidro de sua casa (uma prisão) que, por não ter um único móvel, também ilustra o vazio de sua vida – e é significativo que a causa disto, sua violenta profissão, esteja perfeitamente representada pela arma que surge em primeiro plano, diminuindo o homem ao fundo. Quanto a Vincent, a armadilha representada por Los Angeles é resumida com perfeição por sua esposa, que o acusa de viver “entre os restos de cadáveres, peneirando os detritos (...) e perseguindo o cheiro de suas presas”.
Escrito pelo próprio diretor a partir do piloto para a tevê Os Tiras de Los Angeles, que havia realizado em 1989 para a NBC, Fogo Contra Fogo adota uma estrutura de três atos com durações aproximadas de uma hora cada. O primeiro, claro, se encarrega de apresentar os personagens e seus objetivos básicos; o segundo traz Vincent e Neil se reconhecendo como adversários, culminando na cena em que conversam cara-a-cara; e, finalmente, o terceiro ato traz o assalto planejado por Neil e as conseqüências desta ação para todos os personagens. Contrapondo o ladrão ao policial de Pacino, que, em lugar de amigos verdadeiros, conta apenas com colegas de trabalho, Robert De Niro confere a Neil uma preocupação sincera com os problemas de seus parceiros, que se tornam o mais próximo que ele tem de uma família – e estes, reconhecendo a preocupação do líder, não hesitam em buscar sua orientação ou ajuda sempre que julgam necessário, mesmo que, apesar de tudo, o bandido deixe claro que, em caso de emergência, largaria todos em poucos segundos por uma questão de auto-preservação.
No entanto, quando o filme tem início, Neil encontra-se – talvez pela primeira vez em muitos anos – tentado a baixar a barreira que o impede de manter um relacionamento amoroso. Mesmo não se considerando um solitário, mas apenas um sujeito precavido, ele gradualmente se entrega à tentação afetiva representada por Eady (Brenneman), cujos avanços iniciais ele rechaça de forma agressiva, num instinto básico de auto-defesa. Porém, é durante um jantar com as famílias de seus parceiros que Neil constata o que está sacrificando (algo que Mann ilustra belissimamente através da decupagem que revela o olhar melancólico com que o sujeito observa a dinâmica ao redor da mesa) e, num impulso, liga para a moça. Ainda assim, sua hesitação em romper as próprias regras estabelece uma distância forçada entre ele e a garota – e é comovente perceber como, ao deixá-la adormecida na cama, Neil a fita intensamente, como se tentasse gravar aquela imagem na mente por reconhecer que, no futuro, precisará daquela lembrança para manter sua sanidade.
Curiosamente, enquanto o personagem de De Niro parece disposto a começar um relacionamento, o policial de Pacino encontra-se no caminho oposto, prestes a destruir seu atual casamento: sem se permitir perder o controle em momento algum (suas únicas explosões, como no instante em que grita com um informante, parecem calculadas, sendo empregadas apenas para intimidar), Vincent Hanna mantém sua esposa Justine (Venora) à distância – e sua aparente indiferença a leva a atos extremos em busca de uma proximidade, mesmo que raivosa, do marido. Observem, por exemplo, o instante em que Vincent chega em casa e, notando que Justine está se aprontando para sair, pergunta “Onde nós vamos?” – e, ao não receber resposta, completa: “OK, onde você vai?”, numa calma estudada que condena a provocação da esposa ao fracasso instantâneo. Com isto, ela é obrigada a ir além, mas, novamente, o marido luta para se mostrar indiferente, optando por ignorá-la enquanto confronta o homem com o qual ela se encontra, usando um aparelho de tevê para focar sua raiva (ainda assim, ele finalmente deixa escapar sua frustração ao chamá-la de “vadia”).
Porém, Michael Mann não deixa a tarefa de retratar a dinâmica deste relacionamento apenas nas mãos de seus atores, utilizando sua câmera e suas composições ativamente durante a projeção: inicialmente, por exemplo, quando vemos o casal num momento de rara comunhão após o sexo, Venora surge com uma expressão relaxada em primeiro plano enquanto Pacino a observa ao fundo, mas, mais tarde, suas posições se invertem e, desta vez, eles aparecem sintomaticamente olhando em direções opostas – e é somente no terceiro ato, quando acertam suas diferenças (o que não indica uma reconciliação), é que Mann coloca os atores no centro do quadro, finalmente olhando diretamente um para o outro. Este reencontro, aliás, é movido por um incidente particularmente trágico: a tentativa de suicídio da filha de Justine, vivida por Natalie Portman – e notem que, ao abraçar a esposa angustiada, Vincent a segura com a mesma força e da mesma maneira com que, anteriormente, buscara acalmar outra mãe inconsolável cuja filha fora assassinada por Waingro (Gage). É como se, apenas ao testemunhar um sofrimento indizível, o policial finalmente conseguisse se libertar de seus escudos e se permitisse compartilhar a dor de seus semelhantes, comungando através do mesmo tipo de tragédia que, paradoxalmente, o mantém sempre tão ocupado em seu trabalho.
Mas se sua vida pessoal é um fracasso, o desempenho profissional de Vincent é ilustrado com habilidade por Pacino: líder incrivelmente competente, basta que o policial aponte para diversos pontos da cena de um crime para que seus subalternos percebam exatamente o que ele deseja saber – e aqui, mais uma vez, a forma direta com que encara o mundo serve para mantê-lo isolado dos demais. Vejam, por exemplo, a cena em que Vincent conversa com um colega pelo telefone, dizendo somente o que precisa e, depois de uma hesitação momentânea para avaliar se há algo mais a questionar, desliga sem fazer cerimônias – e percebam como Mann mantém Pacino isolado, distante dos colegas, ao trabalhar com uma pequena profundidade de campo que desfoca todos os demais.
Da mesma maneira, Neil ganha, na interpretação de De Niro, uma postura profissional igualmente impecável – algo fundamental para que se torne um oponente digno do policial. Ganhando um ritmo intenso através da montagem precisa dos quatro (!) montadores contratados por Mann, a seqüência inicial do roubo ao carro-forte é importantíssima justamente ao estabelecer a eficiência da quadrilha comandada pelo sujeito. Além disso, o diretor utiliza este momento para estabelecer o código de honra do grupo: embora não desejem matar os seguranças do blindado, os ladrões não hesitam em fazê-lo quando fica claro que isto se tornou necessário – mas, mesmo então, o personagem de Sizemore lança um olhar inquisitivo para o chefe, só disparando ao receber um discreto sinal de permissão. E mais: conhecendo-se profundamente, os bandidos não questionam a liderança de Neil, bastando uma palavra deste para que abandonem um serviço inacabado sem sequer questionarem suas razões para a ordem. Esta coesão, aliás, é mais uma vez ilustrada com economia por Mann na cena em que De Niro, irritado, bate a cabeça de Gage numa mesa de lanchonete e, num rápido corte, vemos Sizemore encarar um outro cliente do estabelecimento com um olhar claro de “não se meta” – e, segundos depois, notem como os comparsas de Neil se espalham estrategicamente pelo estacionamento sem que uma única palavra seja dita, antecipando a ação do chefe com relação ao imprevisível Waingro.
Assim, é somente depois de estabelecer com tamanho cuidado as personalidades de seus personagens principais que Michael Mann decide confrontá-los, estabelecendo um intrincado jogo de gato-e-rato no qual policial e ladrão trocam freqüentemente de posição, oscilando entre caça e caçador – algo que o diretor estabelece através de uma cuidadosa estratégia visual. Percebam, por exemplo, como inicialmente Pacino observa Neil através de um monitor de vigilância sem que o bandido perceba o que está ocorrendo: quando um outro agente faz um pequeno barulho, Neil olha diretamente para a câmera, como se encarasse o espectador (e Vincent) e, então, cortamos para um plano similar do policial – que imediatamente percebe que sua posição foi comprometida. Pois mais tarde este quadro se inverterá de maneira brilhante quando é De Niro quem consegue observar seus oponentes sem ser percebido – e notem como Mann cria um quadro que funciona como espelho exato do anterior, trazendo o ladrão, de costas, para o primeiro plano e mantendo os policiais em posição inferior, pequenos, ao fundo (num espaço antes ocupado pelo monitor mínimo que revelava Neil nas sombras). Esta cena, diga-se de passagem, é fantástica ao estabelecer também a admiração mútua entre Neil e Vincent: enquanto este último admira a audácia do ladrão, o primeiro sorri ao perceber a inteligência do policial, que imediatamente constatou a armadilha na qual caíra.
O que nos leva, claro, ao instante icônico, no meio da projeção, em que os dois finalmente se vêem frente a frente – uma expressão que, confesso, é meio traiçoeira, já que, desde o momento em que Vincent pára o carro de Neil, os dois raramente se encaram diretamente, desviando alternadamente os olhares para evitar que estes se encontrem. Mais uma vez demonstrando controle absoluto da dinâmica da narrativa, Mann e os montadores vão fechando gradualmente o quadro ao longo da conversa, aproximando-nos dos personagens à medida que a discussão se torna mais nervosa (embora esta atmosfera seja subentendida, já que nenhum deles explode de fato – e comprovem o que falei anteriormente sobre os gritos controlados de Vincent, já que, sabendo que tal tática não funcionaria com Neil, ele jamais eleva o tom de sua voz). Curiosamente, porém, Mann evita adotar planos com eixo perpendicular ao dos atores, fugindo, com isso, de um quadro que traga Pacino e De Niro encarando-se claramente. Com isso, o diretor salienta ainda mais o antagonismo dos dois homens, que, apesar da obstinação e competência, parecem não ter campo algum em comum.
Contudo, Fogo Contra Fogo não é apenas um fascinante estudo sobre as personalidades destes dois homens; é, também, um policial autêntico que, como tal, conta com intensas seqüências de ação (algo que Mann sempre executa com competência, como podemos ver em obras como Profissão: Ladrão, O Último dos Moicanos e Miami Vice – ficando o terrível A Fortaleza Infernal como a exceção que comprova a regra). Aqui, o destaque cabe, é claro, ao fenomenal tiroteio que se segue ao assalto ao banco e que é iniciado por Chris (Kilmer, perfeito em sua seriedade) ao notar a presença dos policiais. Durando mais de quatro minutos, o tiroteio é, sem dúvida, um dos mais realistas já criados por Hollywood, devendo boa parte de seu sucesso ao excepcional design de som, que acerta na secura dos efeitos dos tiros que atingem as latarias dos carros e no eco distante que estes provocam nas ruas de Los Angeles, bem como nos gritos ao fundo dos transeuntes e dos envolvidos no incidente. Enquanto isso, Mann mergulha sua câmera no meio da ação, como se esta fosse mais uma participante da troca de tiros – e, assim, a câmera se abaixa por trás dos carros para evitar as balas e se movimenta rapidamente de um ponto a outro, como se buscasse achar uma posição mais favorável para acompanhar os acontecimentos. Além disso, o roteiro não tenta romantizar um possível idealismo dos ladrões – e por mais que Sizemore, por exemplo, pareça um sujeito simpático ao lado dos amigos e da família, ele não hesita em pegar um refém quando percebe que está prestes a ser preso ou morto pelos policiais. Funcionando como um clímax perfeito para a narrativa, a seqüência também serve como contraponto à silenciosa tensão que se seguirá, quando os sobreviventes do confronto se preparam para seus desesperados movimentos finais.
E é então que, mais uma vez, Mann se mostra um virtuoso na concepção de seus planos, usando a composição dos quadros e a própria fotografia para estabelecer belas metáforas do estado de espírito daquelas pessoas e, claro, da inevitabilidade do destino. Reparem, por exemplo, como Neil, decidido a abandonar a cidade com Eady ao seu lado enquanto há tempo, entra em um túnel intensamente iluminado: por alguns instantes, o futuro do casal parece promissor, brilhante, até que, ao sair dali e voltar à noite de Los Angeles, o ladrão toma a trágica decisão de buscar vingança contra Waingro, num erro que lhe custará tudo – e vale apontar, aliás, que ao ver Vincent em seu encalço, Neil leva exatos 40 segundos para abandonar Eady numa fútil tentativa de fuga; apenas 10 segundos a mais do que sempre pregara. Aliás, durante esta perseguição final, Mann chega a ser cruel ao pontuar a seqüência com a passagem ritmada de vários aviões sobre Neil e Vincent, já que estas naves parecem atirar no rosto do ladrão a besteira que este fez, já que ele poderia perfeitamente estar voando para longe dali naquele exato instante.
Finalmente, comprovando o cuidado de sua decupagem, o diretor encerra a narrativa com um plano que faz uma perfeita rima visual com a abertura do filme, quando a posição centralizada de Pacino e De Niro, com o aeroporto ao fundo e à esquerda, espelha o quadro que, lá no início, revelava uma plataforma do metrô enquanto um vagão passava ao seu lado. As rimas visuais, diga-se de passagem, são uma freqüente em Fogo Contra Fogo: durante os créditos iniciais, por exemplo, vemos um plano plongé que traz duas pessoas caminhando sobre o asfalto ao passo que, no desfecho da projeção, um plongé similar é utilizado para ilustrar a aproximação cuidadosa de Vincent do baleado Neil. Meu exemplo favorito em todo o longa, porém, diz respeito ao instante (também durante os créditos iniciais) em que Neil passa pela estátua da Virgem Maria carregando Cristo em seu colo – uma imagem que será recriada em detalhes posteriormente, quando Vincent, desesperado, tenta socorrer a enteada no banheiro de seu quarto de hotel depois que esta tenta o suicídio.
Brilhante do inicio ao fim, Fogo Contra Fogo é fascinante por se concentrar em dois homens que, obcecados por suas profissões, acabam dependendo um do outro justamente por não saberem fazer outra coisa. Quando Vincent diz “Sou quem persigo”, está apenas reconhecendo que sempre se entregará com muito mais honestidade aos seus inimigos do que à sua própria família – e que, conseqüentemente, seus oponentes sempre o conhecerão melhor do que sua própria esposa. E é por isto que o plano final deste jovem clássico é tão forte em seu simbolismo, já que, apesar de oponentes ferrenhos, Vincent Hanna e Neil McCauley revelam, através do elo representado por suas mãos entrelaçadas, que sempre representarão, um para o outro, o envolvimento pessoal mais intenso que experimentaram em suas atribuladas existências.
A série Jovens Clássicos tem, como objetivo, homenagear filmes que, apesar de produzidos apenas nos últimos 30 anos, já podem ser considerados como parte fundamental da História do Cinema.
16 de Agosto de 2008