Dia 03
Direto aos filmes:
8) Em seus quase 20 anos de carreira, o diretor sul-coreano Bong Joon Ho vem demonstrando uma versatilidade notável, mas, de modo geral, seus filmes seguem duas tendências principais: o estudo de personagens em meio a fatalidades (Memórias de um Assassino, Mother) e alegorias político-sociais num contexto de fantasia e ficção (O Hospedeiro, Snowpiercer) – e é nesta segunda categoria que se encaixa Okja, exibido em competição no Festival de Cannes deste ano.
Escrito pelo cineasta ao lado do excepcional jornalista e autor Jon Ronson (façam um favor a si mesmos e busquem todos os livros que ele já publicou), o longa tem início com o anúncio feito pela CEO Lucy Mirando (Tilda Swinton) de que uma nova espécie animal foi descoberta no Chile por sua empresa, a corporação alimentícia Mirando, e que 23 espécimes foram distribuídos em um número equivalente de países para que fazendeiros locais possam criá-los por dez anos, quando, então, o melhor deles será selecionado pelo apresentador de tevê Dr. Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal) e procriado para dar origem a uma nova fonte de carne para consumo humano. Uma década depois, conhecemos a adolescente Mija (vivida por Ahn Seo-Hyun e que, desconfio, terá seu nome traduzido com outra grafia para o português), responsável pela criação da imensa Okja, que acaba sendo levada para Nova York contra sua vontade. Determinada a salvar seu gigantesco pet do abatedouro, a menina parte em uma missão particular e acaba se envolvendo com uma organização dedicada a resgatar animais e que é liderada por Jay (Paul Dano).
Investindo em tipos que frequentemente flertam propositalmente com a caricatura – assim com fez em Snowpiercer, aliás -, Bong Joon Ho oferece espaço para que seu elenco componha personagens grandiosos, desde a Lucy de Tilda Swinton, com seus sorrisos falsos e modos artificialmente simpáticos (escolhas perfeitas da atriz) até o Jay de Paul Dano, com um autocontrole e uma disciplina que expõem sua integridade, mas sugerem também um temperamento explosivo sob a superfície calma. Já Jake Gyllenhaal, embora divertido, ocasionalmente fica do lado errado da fronteira entre o over e o artificial, demonstrando irregularidade até mesmo no timbre inconsistente de sua voz (e que às vezes se perde na afetação extrema). Aliás, a estilização destes personagens é eficiente também ao contrastar com o naturalismo da performance da jovem Seo-Hyun, que, como a única pessoa a soar “real” naquele universo, atrai imediatamente nossa identificação. Para completar, a criatura digital concebida pelo filme não só é incrivelmente convincente (a textura de sua pele é detalhada e impressiona, por exemplo, ao mudar de tom quando molhada), como ainda combina imponência e doçura (e seu lento piscar é um dos toques mais notáveis para criar este efeito).
Combinando humor e choque com inteligência, Okja por vezes exibe uma leveza quase infantil ao criar gags típicas de uma animação (como as bolinhas de gude atiradas para atrapalhar perseguidores, por exemplo), equilibrando-as com outras que só serão compreendidas por um público mais adulto (como o plano que recria a famosa foto de Obama, Hillary, generais e assessores acompanhando o ataque ao esconderijo de bin Laden e que aqui são substituídos pelos personagens de Giancarlo Esposito, Shirley Henderson e Tilda Swinton). Além disso, o longa dá alfinetadas precisas em elementos socioculturais contemporâneos, como no momento em que uma jovem se esforça para gravar um vídeo de si mesma sendo perseguida ou na maneira como certo personagem, sendo capturado publicamente em um escândalo, imediatamente anuncia estar certo de que aquela situação servirá de “aprendizado para que se torne uma pessoa melhor” e recita outros discursos recorrentes entre celebridades flagradas em alguma polêmica.
Por outro lado, se o roteiro também faz piada com certos tipos de ativismo (um rapaz que se recusa a comer qualquer coisa que deixe “pegada ambiental” está sempre prestes a desmaiar de fome), isto não o impede de deixar evidente que respeita as causas de ambientalistas e daqueles que se dedicam à proteção dos animais, já que o filme usa suas criaturas fictícias para chamar a atenção do espectador para os horrores de uma indústria que frequentemente parece quase ter prazer em torturar as criaturas que irá abater e comercializar. Aliás, o longa aproveita para condenar a ganância desmedida e a natureza sociopata das grandes corporações, que, jamais satisfeitas com seus lucros descomunais, quebram leis e ignoram quaisquer princípios éticos em troca de uns centavos adicionais.
E se Okja não se esforça em adotar qualquer sutileza em suas mensagens, esta sua obviedade acaba conferindo também certo charme juvenil à sua correta indignação.
(Uma última observação: é uma pena que a Netflix se recuse a exibir o filme comercialmente nos cinemas, já que a tela grande faz jus ao instigante universo concebido por Joon Ho.)
9) A cineasta belga Agnès Varda exibe mais vitalidade e maior impulso criativo aos 88 anos do que a maioria de seus companheiros diretores demonstram aos 30. Não, corrijo: do que a maioria dos artistas, ponto. Para constatar isso, basta assistir ao documentário Visages, Villages, primeira parceria na direção em seus 62 anos de carreira.
Interessada nas obras do fotógrafo e muralista francês JR (e nem é preciso dizer que a recíproca era verdadeira), Varda acompanha o artista – e codiretor – enquanto este viaja por vários vilarejos da França buscando rostos interessantes para fotografá-los e transformá-los em imensos murais colados na fachada de edificações ligadas de alguma forma aos retratados. Aos poucos, a própria Agnès Varda começa a participar das intervenções do amigo, recuperando fotos que fez em sua juventude e até mesmo levando JR para uma visita ao seu velho amigo Jean-Luc Godard (que, comprovando sua escrotice como indivíduo, não perde a oportunidade de magoá-la gratuitamente).
Porém, o fascinante em Visages, Villages é constatar como os murais são apenas parte do processo, já que o documentário se propõe a descobrir também um pouco da história das personagens encontradas pela dupla de realizadores, o que resulta em relatos profundamente humanos sobre memória, nostalgia e sonhos não realizados. Aliás, a própria Varda se abre surpreendente ao expor a fragilidade trazida pela idade e que JR investiga com a curiosidade típica de um artista repleto de empatia.
Doce, divertido e sensível, o filme – exibido fora de competição – já estabeleceu seu lugar como um dos melhores trabalhos desta edição do festival.
10) Em contrapartida, o filme que vi a seguir, They, merece destaque apenas por ser uma rara produção do Qatar, já que, fora isso, o trabalho da diretora iraniana Anahita Ghazvinizadeh é um longa que não tem nada a dizer, mas ainda assim tenta fazê-lo com uma pretensão ridícula. No papel, a premissa é sólida: J. (Rhys Fehrenbacher) é um(a) adolescente que, em dúvida quanto à própria identificação de gênero, vem tomando bloqueadores de hormônio para desacelerar o surgimento de suas características sexuais secundárias, sendo apoiado(a) pelos pais, pela irmã e, pelo que vemos ao longo da projeção, por todos que o(a) conhecem (com exceção de um amigo de escola). No entanto, como exames já começam a apontar um início de descalcificação óssea, seu médico insiste na necessidade de uma rápida definição para que possam modificar o tratamento.
Por um lado, é interessante que o filme lide com um tópico como identificação de gênero sem tratá-lo como uma controvérsia inevitável, como se esta escolha fosse algo que merece ser polemizado; por outro, os sentimentos de J. jamais são desenvolvidos pelo roteiro (ou mesmo apresentados), já que o longa limita-se a trazê-lo(a) recitando um poema que nada diz de fato sobre seu processo psicológico. Assim, sem nada que substitua um conflito dramático, They vai se tornando apenas desinteressante com o passar do tempo.
Esta abordagem, por sinal, é feita duplamente, já que a maior parte da projeção não se dedica nem mesmo ao(à) protagonista, mas ao namorado de sua irmã, o imigrante iraniano Araz (Koohyar Hosseini), que convida J. e Lauren (Nicole Coffineau) para um jantar na casa de sua tia – e, embora as dificuldades enfrentadas por imigrantes sejam mencionadas superficialmente, Ghazvinizadeh também decide ignorá-las como possibilidade de recurso dramático. E se novamente há um certo frescor em ver um tema normalmente espinhoso ser tratado como um simples fato da vida, de um ponto de vista de construção narrativa a obra volta a se colocar em uma armadilha da qual não escapa.
Somando-se a tudo isso há a estética desinteressante adotada pela diretora e a montagem sem ritmo, que tenta expandir aquela situação o máximo possível, mas sem conseguir evitar que soe longa demais mesmo tendo apenas 75 minutos de duração – e o tom monocórdico com que todos os atores recitam suas falas só torna tudo mais insuportável.
11) Minha quarta sessão do dia foi a do iraniano Lerd, dirigido por Mohammad Rasoulof, cujo projeto anterior, o ótimo Manuscritos Não Queimam, venceu o prêmio FIREPRESCI ao participar do festival em 2013. Desta vez, Rasoulof acompanha o drama do criador de peixes Reza (Reza Akhlaghirad), que, devendo dinheiro para o banco, se nega a pagar o suborno pedido pelo gerente da instituição para diminuir sua dívida, o que frustra sua esposa Hadis (Soudabeh Beizaee). A situação se torna pior quando o sujeito acaba se envolvendo em uma briga com o segurança de uma empresa que vinha interrompendo o fluxo de água para sua terra, sendo processado por ter quebrado o braço do outro (uma lesão que não ocorreu, sendo incluída na denúncia graças a um laudo fraudulento).
Transformando a situação do protagonista em um pesadelo provocado pela burocracia, por um Estado corrompido e pela ganância de uma corporação protegida por contatos poderosos, Lerd é um estudo não de um personagem, mas de sua desconstrução. Constantemente lembrado de que o maior obstáculo que enfrenta é sua própria honestidade, Reza é a representação do Homem Comum, do cidadão que é pisado por tudo e por todos e percebe que não tem a quem recorrer, sendo obrigado a optar entre aceitar sua situação miserável ou tentar encontrar alguém ainda menos poderoso para pisotear. Sim, o filme se passa no Irã, mas sua mensagem é universal – e é curioso notar como há uma sincronia entre um de seus pontos principais e o do brasileiro Joaquim: o de que os desfavorecidos são frequentemente levados pelos poderosos a lutar pelos objetivos destes.
Sólido como drama e como protesto, Lerd torna-se ainda mais admirável quando nos lembramos que seu diretor foi preso após lançar Manuscritos Não Queimam, sendo acusado pelo governo iraniano de fazer “propaganda” contra este. Pelo visto, o tempo de encarceramento não destruiu aquilo que Rasoulof divide de mais notável com o protagonista deste seu novo trabalho: a integridade.
12) Assim como havia feito no ótimo Force Majeure, de 2014, o realizador sueco Ruben Östlund explora, neste seu novo trabalho, The Square, o humor do desconforto. Especializando-se em personagens que, em situações extremas, descobrem algo sobre si mesmos e afundam no caos por não conseguirem parar de explorar a novidade, o diretor constantemente leva o público a rir enquanto olha para a tela por entre os dedos da mão.
Aqui, o atormentado protagonista é Christian (Claes Bang), recém-nomeado curador do Museu de Arte Contemporânea de Escolmo. Organizando a primeira grande exposição da instituição em sua gestão, ele investe na obra que dá título ao filme: um quadrado luminoso instalado no chão e dentro do qual todas as pessoas devem se tratar de maneira igualitária e gentil. Porém, por mais que insista em explicar sua crença na necessidade do comportamento ético, Christian tem suas convicções testadas quando seu celular é roubado – e, depois de localizar o aparelho em um prédio numa vizinhança pobre, ele decide colocar um bilhete em todos os apartamentos do edifício exigindo que o “ladrão” devolva o aparelho, o que dá início a uma série de incidentes que, associados ao estresse do trabalho no museu, tornam a vida do sujeito inesperadamente instável.
Instabilidade, vale dizer, não é algo com o qual Christian se mostre à vontade – algo que o roteiro de Östlund revela com elegância e economia ao trazê-lo ensaiando um momento de “espontaneidade” e que já diz muito sobre sua personalidade. Com isso, o personagem se apresenta como vítima ideal da principal estratégia narrativa do diretor, que se mostra propenso a criar cenas com situações prosaicas apenas para, em certo instante, introduzir um elemento disruptivo que tire aquelas figuras de sua zona de conforto. Estes elementos podem ser simplesmente a presença de um bebê em uma reunião de trabalho ou algo mais incômodo como um debate com um artista plástico (Dominic West) frequentemente interrompido por obscenidades gritadas por um espectador com Síndrome de Tourette. Já em outros instantes, Östlund beira o nonsense (embora procure não alcançá-lo totalmente) ao plantar componentes absurdos como um chimpanzé em um apartamento ou – numa das passagens mais engraçadas da projeção – numa disputa envolvendo uma camisinha usada.
Mas Ruben Östlund também demonstra ter ambições temáticas claras, já que busca discutir a natureza da Arte e os fundamentos que a definem como tal – uma questão constantemente trazida à tona na avaliação da Arte Contemporânea, mas que se encontra presente desde que o primeiro humano produziu algo para despertar alguma reação emocional, psicológica ou estética em seus contemporâneos. Aliás, só por apresentar o tópico desta maneira já acabo por reduzi-lo, pois não estou certo de que uma obra artística precise ser pensada como tal para ter valor cultural, já que o mero ato de deslocar um objeto para um ambiente no qual normalmente não o encontraríamos é capaz de despertar interpretações ao forjar uma ligação com o referente do observador. Ou podemos ir além: uma obra vista em um museu já não é a mesma quando reproduzida em um filme, posto que a mera transposição para a tela altera seu significado e, de certa maneira, o próprio significante (em The Square, por exemplo, vemos uma instalação na qual o close de um homem é projetado em uma parede, mas quando notamos aquela mesma projeção ao fundo de uma cena em que o protagonista se encontra, a obra assume um peso diferente daquele que teria para alguém que se encontrasse no museu, já que se transforma instantaneamente em um elemento narrativo do filme).
Já em outra cena absolutamente brilhante (e que rivaliza com a sequência da festa de aniversário em Toni Erdmann no que diz respeito à reação divertida do público em Cannes), uma festa repleta de convidados abastados é interrompida para uma performance que, aos poucos, ganha contornos cada vez mais incômodos precisamente por estender ao máximo a premissa com a qual é introduzida, trazendo Terry Notary numa imitação de gorila que deixaria Andy Serkis com inveja (não à toa, Notary fez o papel-título no recente Kong: A Ilha da Caveira). Esta longa cena – rodada praticamente sem cortes, por sinal – atua como amarra temática para outra questão central de The Square: o comportamento humano diante da vulnerabilidade alheia. Não é por acaso que, ao longo da projeção, vemos tantos mendigos abordando os personagens, que, como é tão comum em nosso mundo, preferem ignorar a tragédia que estes representam a fim de não serem obrigados nem ao menos a pensar sobre aquilo.
E esta é uma das constatações que, no limite, importunarão tanto a consciência de Christian: o fato de que, por mais esclarecido e generoso que goste de se imaginar, há preconceitos, egoísmos e comodismos dos quais precisamos trabalhar muito para abandonar, sendo necessário bem mais do que discursos bem intencionados ou gestos vazios para que sejamos bem sucedidos.
20 de Maio de 2017