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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
14/01/2017 30/09/2016 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
84 minuto(s)

Sob a Sombra
Under the Shadow

Dirigido e roteirizado por Babak Anvari. Com: Narges Rashidi, Avin Manshadi, Bobby Naderi, Ray Haratian, Arash Marandi, Bijan Daneshmand, Behi Djanati Atai, Soussan Farrokhnia, Aram Ghasemy, Hamid Djavadan.

Poucos gêneros se prestam tanto às metáforas e alegorias quanto o terror: por trás de um Jason, um Freddy Krueger, um Michael Myers e da maldição de Corrente do Mal há frequentemente um comentário sobre sexualidade, moralidade e opressão. Pois o iraniano Sob as Sombras, que marca a estreia na direção de longas do cineasta Babak Anvari, usa o horror vivido por sua protagonista como um comentário brilhante sobre a bestialidade da guerra e a repressão religiosa sofrida pelas mulheres em um Estado teocrático. Que no processo ainda deixe o espectador agarrado aos braços da poltrona é algo notável.


Ambientado na Teerã de 1988, último ano da longa guerra entre o Irã e o Iraque, o roteiro (também escrito por Anvari) tem início quando Shideh (Rashidi), uma ex-estudante de Medicina, se encontra diante do diretor de sua antiga faculdade na esperança de que este lhe permita retomar os estudos anos depois de ter sido expulsa por se envolver com movimentos políticos durante a revolução de 1979. Informada de que jamais poderá retornar ao curso, ela é preguiçosamente consolada pelo marido (Naderi), que comenta que “talvez tenha sido melhor assim”, o que compreensivelmente a irrita. Quando o sujeito, que é médico, é forçado pelo governo a viajar para servir em um dos fronts da guerra, Shideh fica sozinha com a filha Dorsa (Manshadi) em seu apartamento na cidade, que também vem sendo constantemente bombardeada pelos inimigos. É então que a boneca favorita de Dorsa desaparece, o que leva a menina a acreditar que o brinquedo foi levado por djinns (demônios da religião islâmica) – e embora a princípio duvide da criança, sua mãe aos poucos começa a notar eventos estranhos ocorrendo no prédio.

Exibindo uma notável segurança na condução da narrativa, o jovem cineasta adota uma estratégia inteligente ao ancorar o primeiro ato da obra em um universo realista que gradualmente vai sendo invadido por elementos clássicos do terror, o que torna a experiência da protagonista ainda mais inquietante. Da mesma forma, Anvari e o diretor de fotografia Kit Fraser empregam quadros estáticos (ou quase) até a partida do companheiro de Shideh, quando, então, a câmera passa a se movimentar cada vez mais, ressaltando a tensão crescente da história – e o fato de que esta se passa num período pré-Internet/telefones celulares aumenta o isolamento experimentado pela heroína. Enquanto isso, o design de produção não só executa uma ótima recriação de época como acerta ao investir preferencialmente em tons pasteis que conferem uma atmosfera ainda mais opressiva ao filme.

Esta, por sinal, é uma das maiores virtudes de Sob as Sombras: mesmo quando não está assustando o público (e ele conta com uma boa parcela de sustos), o filme nos mantém tensos ainda que não tenhamos certeza da razão. Visualmente, a estratégia do diretor é impecável: frequentemente, quando os personagens se encontram próximos da câmera, Anvari deixa parte do quadro livre para que criemos expectativas constantes acerca do que pode ou não surgir ao fundo – e como a profundidade de campo adotada por Fraser tende a ser reduzida, a falta de foco nos elementos mais distantes transforma qualquer presença em uma possível ameaça, já que não podemos ter segurança quanto ao que estamos vendo. Além disso, o longa compreende o poder dos simbolismos sobre o espectador, desde os imensos “X” formados pelas fitas adesivas que reforçam todas as janelas do apartamento contra explosões (e que se projetam em sombras agourentas sobre a protagonista) até as rachaduras no teto e na parede que representam a fragmentação e destruição da família (fazendo um eco com a infiltração vista em Água Negra, com o qual este trabalho divide várias características). Para completar, Sob as Sombras pega emprestado o míssil que falha em detonar do magnífico A Espinha do Diabo para criar uma imagem belíssima na qual o enquadramento preciso faz com que o dispositivo pareça estar cravado no peito de um residente do prédio.

Este último tableau vivant concebido por Anvari, diga-se de passagem, resume perfeitamente um dos temas da narrativa ao abordar o horror da guerra e seu efeito sobre os indivíduos, o que é ressaltado pela maneira quase casual com que o diretor da faculdade (não) reage a uma explosão vista através de sua janela. Assim, quando alguém explica que os djinns são atraídos pelo sofrimento, o caráter metafórico do tal demônio fica patente mesmo que, no universo diegético do filme, ele seja bem real.

Mas Sob as Sombras ainda tem um interesse adicional ao apresentar sua trama sobrenatural: denunciar a opressão sexista do Irã pós-revolução islâmica (algo bem retratado também no brilhante Persépolis) e que já se mostra presente na impossibilidade de Shideh se tornar médica. Assim, quando esta guarda um livro de Medicina numa gaveta e o tranca, o que está sendo contido ali é seu direito à independência. Da mesma forma, é mais do que apropriado que o djinn que ameaça mãe e filha surja envolvido por um hijab que, em determinado momento, também cobre completamente as duas vítimas, tentando sufocá-las com a peça de vestimenta imposta pelos homens que dominam a religião e, consequentemente, o Estado. (E como se a relevância do hijab não fosse clara o bastante, o roteiro traz uma cena na qual a protagonista é detida justamente por sair sem usá-lo: “Estamos na Suíça, por acaso?”, grita um policial.)

Trazendo duas fortíssimas atuações centrais (a pequena Avin Manshadi é uma revelação), Sob as Sombras é mais do que um ótimo filme de terror; é, também, um importante manifesto político.

14 de Janeiro de 2017

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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