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Críticas por Pablo Villaça

Argentina, 1985
Argentina, 1985

Dirigido por Santiago Mitre. Roteiro de Santiago Mitre e Mariano Llinás. Com: Ricardo Darín, Alejandra Flechner, Peter Lanzani, Norman Briski, Laura Paredes, Gina Mastronicola, Santiago Armas Estevarena, Claudio Da Passano, Gabriel Fernández, Paula Ransenberg, Héctor Díaz, Carlos Portaluppi, Marcelo Pozzi, Joselo Bella, Carlos Ihler, Susana Pampín.

Dos seis golpes militares ocorridos na Argentina, durante o século 20, o mais sangrento foi, sem dúvida, o que se iniciou em março de 1976 e que, durando sete anos, resultou na morte/desaparecimento de cerca de 30 mil pessoas. Com a eleição de Raúl Alfonsín ao fim de 1983, porém, um processo de investigação sobre a brutalidade do período foi iniciado com relativa rapidez, culminando no julgamento dos principais líderes do regime (incluindo o perverso general Videla) cerca de 16 meses depois. Aliás, não é à toa que o filme que narra os esforços do promotor Julio César Strassera para montar um caso sólido contra os militares tenha o título Argentina, 1985, sugerindo, de certo modo, que a democracia do país teve início de fato naquele ano, com a responsabilização dos criminosos que a haviam destruído anos antes.


Co-roteirizado por Mariano Llinás, que em 2021 escreveu outro fabuloso longa – Azor - sobre o período, esta obra tem início poucos meses depois da eleição de Alfonsín, quando os horrores da ditadura passam a ser conhecidos em toda sua pavorosa extensão através de depoimentos das vítimas e/ou de seus parentes, aumentando a pressão da sociedade civil para que o presidente cumpra a promessa de levar os generais aos tribunais. Incumbido de desempenhar a tarefa a contragosto por duvidar que as Forças Armadas aceitem se submeter à Justiça (afinal, o Exército já havia absolvido os generais, claro, em tribunais militares), Strassera (Darín) não demora a sofrer pressões e ameaças anônimas que o levam a temer pela segurança de sua família, sendo forçado também a montar uma equipe de advogados jovens e inexperientes, já que os veteranos com os quais normalmente trabalharia se recusam a ajudá-lo - ou por medo ou por terem inclinações fascistas. Contando com poucos meses para colher centenas de depoimentos, montar e apresentar o processo, o promotor é auxiliado pelo idealista Luis Moreno Ocampo (Lanzani), cuja família é composta por integrantes e apoiadores do golpe, incluindo sua própria mãe (Pampín).

Difícil, por sinal, é encontrar quem não tenha ligações com o antigo regime: enquanto um dos ministros de Alfonsín busca conter o alcance das investigações, por exemplo, outras figuras importantes da mídia ajudam a espalhar a narrativa de que os militares na realidade defenderam o país de “subversivos”, que, assim, teriam sido responsáveis por seus próprios destinos trágicos (um dos entrevistadores mais famosos do país havia atuado como Ministro da Propaganda na ditadura). Ao mesmo tempo, havia o temor de que, ameaçados, os milicos tentassem mais um golpe de Estado, o que, considerando a História do país, não seria surpresa.

Por outro lado, à medida que Strassera constata a dimensão dos crimes cometidos, maiores se tornam suas responsabilidades para com as vítimas – incluindo aquelas que, sobreviventes, demonstram uma coragem notável ao aceitarem testemunhar no tribunal, narrando experiências chocantes como o uso de um bebê recém-nascido para torturar psicologicamente a mãe que acabara de dar à luz e o sequestro indiscriminado de “suspeitos” em uma prática tão disseminada que, não raro, indivíduos sem qualquer envolvimento político eram levados pela polícia (como, por exemplo, membros de uma associação de psiquiatras cujas iniciais eram iguais às de um grupo peronista). Além disso, claro, há as dezenas de milhares de assassinatos e desaparecimentos cometidos em nome da “segurança nacional” e que Argentina, 1985 identifica de maneira apropriada ao encerrar com uma dedicatória às vítimas do terrorismo de Estado.

Dirigido por Santiago Mitre, que comandou os razoáveis Paulina e A Cordilheira e colaborou no roteiro de vários ótimos trabalhos de Pablo Trapero, o filme adota uma abordagem seca e direta de um ponto de vista dramático, encarando a narrativa com uma racionalidade que reflete a do protagonista, que expõe os efeitos emocionais de sua tarefa apenas pontualmente por reconhecer a necessidade de guiar uma equipe jovem e, como consequência, mais impulsiva e passional. Neste sentido, a performance de Darín é brilhante ao permitir que o espectador perceba, sob sua postura aparentemente impassível, a dimensão de sua humanidade e de sua compaixão para com as vítimas e suas famílias – e apenas um ator com o calibre de Darín seria capaz de evocar emoções tão intensas a partir de pequenos gestos ou de microexpressões faciais. Arremessado para o centro de uma ação sem paralelos na trajetória de países recém-saídos de um regime ditatorial, o Strassera de Darín é um homem que executa seu trabalho inicialmente por ser sua função, mas que eventualmente o faz por ser o certo, mesmo que não perceba a dimensão do processo. “A História não foi feita por pessoas como eu”, ele diz, menos por modéstia do que pela percepção de estar fazendo “apenas” o moralmente correto – sem se dar conta de que uma das principais características do herói é agir por não ver a inação como opção.

Isto se aplica também às valentes Mães da Praça de Maio, que transformaram o amor por seus filhos e a dor por sua perda em ímpeto e coragem, tornando-se politicamente ativas não por ideologia, mas por amor (há como argumentar que as duas coisas se sobrepõem, mas esta é outra discussão) – e o filme estabelece como são vistas como objeto de temor por parte dos militares, que consideram até seus tradicionais lenços brancos em volta da cabeça como um símbolo poderoso que ressaltaria para o público o horror das ações do regime. Enquanto isso, a inexperiente equipe de Strassera traz para a narrativa o olhar da juventude, com seus princípios ainda intocados pelo cinismo e sua capacidade de enxergar o mundo como um lugar ainda possível de ser consertado, sendo tocante notar, por exemplo, como uma jovem advogada chora ao ver uma foto que exibe os tênis nos pés de uma vítima dos militares e que demonstra como poderia ser ela naquela imagem em circunstâncias um pouco diferentes. (O uso de imagens de arquivo pelo filme, vale dizer, é pontual e poderoso.)

Já no extremo oposto do espectro estão aqueles que, dominados por uma visão de mundo individualista, autoritária e desumana, conseguem justificar para si mesmos (e seus semelhantes) as crueldades que cometem, maquiando-as porcamente com uma retórica hipócrita sobre “excessos pontuais”, “defesa do país”, “ameaça comunista” e, claro, a infalível tríade “Deus, Pátria e Família”, que nada tem de misericordiosa, vem normalmente acompanhada da liquidação de bens nacionais a outros países e é pregada por indivíduos com uma visão minúscula do conceito de “família”. Para piorar, estes monstros costumam receber o apoio (leia-se: autorização tácita para seus crimes) de uma classe média manipulável e instrumentalizada pelos ricos contra os mais pobres, sendo levada a acreditar que um dia estará entre os primeiros sem perceber que estes os enxergam com o mesmo desprezo destinado aos últimos.

Dramatização histórica que, como tal, tem o papel fundamental de manter vivas as experiências que, esquecidas, inevitavelmente se repetirão, Argentina, 1985 é uma obra tão poderosa em seu propósito que consegue transformar um personagem sentado, lendo um documento, em um clímax narrativo capaz de levar o espectador a prender a respiração. Ao apontar como “a paz deve ser forjada não no esquecimento, mas na memória”, a fala de Strassera é a lembrança de como uma anistia forçada pelos criminosos é tão perversa quanto os crimes perdoados, revitimizando não só os indivíduos torturados, desaparecidos ou mortos, mas a sociedade como um todo. Desta maneira, o discurso se torna catártico pelo simples fato de poder ser feito, demonstrando, com sua existência, a beleza simples – e facilmente destruída – da liberdade.

Assistir à obra de Santiago Mitre é uma experiência agridoce ao nos lembrar de como a Justiça e a História deveriam tratar déspotas ao mesmo tempo que ressalta como a falha em puni-los enfraquece a democracia que renasceu com sua queda – e como os efeitos disso podem ser sentidos décadas depois, levando um país a ignorar a sociopatia do mesmo tipo de homem que, digamos, por 21 anos converteu a realidade em pesadelo.

E mesmo que provavelmente seja um pouco tarde para corrigirmos esta rota, talvez ainda possamos nos atrever a sonhar com uma produção futura que, também indicando o renascimento de nossa democracia, traga o belo título de Brasil, 2022.

24 de Outubro de 2022

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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