Há infinitas maneiras de se contar uma história. Há infinitas maneiras de se desenvolver uma reflexão sobre temas grandiosos ou particulares. Há infinitas maneiras de se experimentar esteticamente com o Cinema. Infelizmente, se formos considerar apenas o que é lançado semanalmente no circuito comercial, apenas uma parcela mínima destas possibilidades chega ao grande público.
Não estou dizendo aqui, obviamente, que esta parcela mínima é “melhor” ou “pior” do que as demais. Quem acompanha meu trabalho há algum tempo (ou fez meus cursos), sabe que repudio qualquer tipo de preconceito cinematográfico: é perfeitamente possível encontrar obras-primas inesquecíveis no sistema de produção hollywoodiano ou na filmografia desconhecida de um cineasta que reside no interior de Minas Gerais. O que lamento é que parte considerável do público – incluindo muitos indivíduos que se identificam como “cinéfilos” – demonstre tão pouca curiosidade com relação ao que foge do convencional.
O que me traz à Mostra Indie, que acontece entre 3 e 9 de setembro em Belo Horizonte: trazendo uma programação repleta de filmes que certamente adotam linguagens, propostas estéticas e/ou temas que podem proporcionar uma experiência nova ao espectador, o evento inclui ainda retrospectivas da obra de cineastas pouquíssimos conhecidos no Brasil (como aquela, com curadoria de Aaron Cutler, que homenageia a realizadora russa Kira Muratova, incluindo trabalhos inéditos no país).
No primeiro dia da mostra, aliás, assisti a três longas que fizeram jus à proposta e ao nome do Indie, começando com o tailandês Ponto de Fuga (Vanishing Point, 2015), de Jakrawal Nilthamrog. Partindo de uma lembrança dolorosa do cineasta – a morte de seus pais em um terrível acidente de carro -, o filme dá início à projeção com fotos chocantes do desastre antes de finalmente saltar para o ficcional (ou semi?) ao acompanhar a reconstituição de um assassinato em uma floresta. Depois de alguns minutos, porém, somos apresentados a outros personagens cujas relações com o que víramos antes não ficam imediatamente claras, incluindo o dono de uma fábrica e um jovem que conhece uma prostituta mais velha.
Adotando um ritmo contemplativo, estudado, que em vários momentos quase ultrapassa o limite da autoindulgência (lembrando a obra do conterrâneo – e que considero cada vez mais insuportável – Apichatpong Weerasethakul), Nilthamrog evita a armadilha ao sempre manter o foco não exatamente nas ideias que quer discutir, mas nas sensações que busca despertar. Neste aspecto, Ponto de Fuga é uma experiência admirável, mergulhando o espectador numa narrativa que cria uma atmosfera onírica (por vezes lynchiana) e frequentemente assume a característica de angustiante pesadelo.
Recheado de planos que permanecem com o espectador muito depois do fim da projeção, o filme emprega os lentos travellings como gramática básica, apresentando a mise-en-scène de forma emblemática e inspirando o público a investigar não só sua plástica, mas seus significados – planos como aquele que traz um criminoso (com o rosto oculto por um capacete) “violentando” um imenso urso de pelúcia ou aquele que enfoca uma idosa diante da mata (e o design de som aqui se mostra fundamental ao ressaltar o terror subjacente às imagens).
Já em outros instantes, o diretor cria intromissões surpreendentes e bem-humoradas como, por exemplo, ao adotar uma montagem que subitamente atira na tela, sem qualquer aviso, um vídeo cafona de casamento/karaokê que, fedendo aos anos 80, invade a narrativa principal quando as letras da música passam a cobrir a ação. Já mais tarde, Nilthamrog sugere a chave de seu filme em um plano memorável no qual sua câmera percorre o ambiente enquanto um monge narra o sonho de natureza sexual que teve há algumas noites – algo que combina com a própria circularidade da narrativa, que se revela de forma trágica em dois momentos ao sugerir a identidade da menina desaparecida no início da projeção e ao retornar ao acidente que marcou a vida do realizador.
Contendo, ainda, um plano-sequência fabuloso que, depois de seguir um personagem por alguns minutos, subitamente passa a flutuar sobre o terreno acidentado que este percorre, Ponto de Fuga é o tipo de filme que ilustra muito bem a capacidade que o Cinema tem de levar o espectador a experimentar sentimentos mesmo que não esteja obrigatoriamente consciente da lógica interna da “trama” que está acompanhando.
Aliás, sensação parecida – embora menos eficiente – desperta também o filme que vi a seguir, Paisagem com Várias Luas (Maastik mitme kuuga, 2014), dirigido pelo estoniano Jaan Toomik. Aqui, a sugestão de perda da razão é o mote principal da narrativa, que acompanha um homem cujo casamento em decadência dispara um mergulho na insanidade envolvendo lembranças e conversas imaginárias com ex-parceiras e situações surreais.
Assim, buscar uma lógica linear no longa de Toomik seria não só infrutífero como indício de não ter compreendido sua proposta. Por outro lado, justamente por saltar de uma “alucinação” a outra sem qualquer estrutura aparente, o filme pode representar uma experiência frustrante, mesmo que provoque reações divertidas justamente por sua abordagem hermética (e a sequência que encerra a projeção e envolve indivíduos com gigantescas cabeças de animais em um trem é um desfecho perfeito para a obra).
O mais interessante em Paisagem com Várias Luas, porém, é a forma franca com que lida não só com o egocentrismo de seu protagonista, mas também com seu machismo. Nas fantasias de Juhan (Hendrik Toompere Jr), as mulheres de sua vida – presente e passada – parecem atravessar suas existências em função do sujeito: o que importa é como ele se sente, o que ele pensa, o que ele faz. Em contrapartida, ele dedica sua atenção a uma ou outra de acordo com as próprias conveniências (e repetidas vezes responde a ligações com um “Não tenho tempo para você agora”), num egoísmo que é ilustrado também em suas interações com o filho pequeno.
Sempre vestindo a mesma roupa, que busca projetar uma aura de homem confiante e bem-sucedido, mas consegue apenas expor sua natureza narcisística e imutável, Juhan chega a urinar nos cantos de um aposento para marcar o território em volta de uma de suas companheiras, também imaginando o atual namorado de uma ex como um sujeito que é rapidamente ofuscado por seu próprio “charme”.
Rico em seu design de produção, que cria ambientes com cores opressivas que ajudam a conceber a natureza inquietante das fantasias do protagonista, o filme também é enriquecido pela maneira como sugere o rompimento da fronteira entre realidade e ilusão – como na cena que traz o sujeito conversando com uma ex enquanto tomam vinho em uma mesa de restaurante que, logo descobrimos, encontra-se no meio de uma pista de atletismo na qual seu filho pratica saltos (o que deixa claro, de maneira elegante e inteligente, a atividade que Juhan desempenhava quando mergulhou em suas fantasias).
Ainda assim, por mais interessante que seja como um exercício de linguagem, o longa é limitado pela personalidade repugnante de seu personagem principal, o que é uma pena.
Para completar o primeiro dia do Indie, assisti a dois trabalhos da russa (então soviética) Kira Muratova: o curta Chuvas de Primavera (Vesseniy dozhd, 1958), que ela dirigiu ao lado do primeiro marido, Oleksandr Muratov, quando eram ainda estudantes de Cinema, e Breves Encontros (Korotkie vstrechi, 1967), seu primeiro trabalho solo na direção de longas.
Aliás, a decisão de exibir os dois numa única sessão representou não só um acerto do ponto de vista de “primeiros esforços”, mas também como rima temática (e, de novo, parabéns ao curador Aaron Cutler*): enquanto o curta acompanha uma história de amor juvenil, de descoberta, o longa vai na outra ponta ao trazer personagens que já lutam com romances cheios de frustração e dor.
Ambos fotografados num preto-e-branco belíssimo e evocativo, os filmes revelam Muratova como uma diretora atenta não só à construção dos personagens, mas ao desenvolvimento de seus sentimentos e à exploração quase existencial do papel que o amor – ou a busca deste – desempenha em suas trajetórias. Se no curta somos brindados com o calor emanado do jovem casal enquanto descobrem o prazer que sentem quando juntos, no longa percebemos a frieza e o desencantamento de abandonos ou da difícil constatação de que nem sempre um relacionamento fracassa por falta de amor. Neste sentido, ambos parecem sugerir que o período de “lua-de-mel”, de vivência da idealização romântica, é breve como uma chuva de primavera (outra rima surge, portanto, entre os dois títulos).
Mas não menos memorável ou prazerosa.
*Correção: Cutler esclareceu que a sugestão de programar estes dois filmes na mesma sessão partiu de Evgeny Gusyatinsky, que organizou uma retrospectiva do trabalho de Muratova no festival de Roterdã.
05 de Setembro de 2015