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Festival de Berlim 2016 - Dia 01 Festivais e Mostras

Festival de Berlim – Dia 01

Cada festival tem uma personalidade – e, claro, o clima da cidade que hospeda o evento conta muito para determiná-la. A Mostra de São Paulo não poderia ser mais diferente do Festival do Rio; o Olhar de Cinema (em Curitiba) do Festival de Brasília; Cannes de Berlim. Se em Cannes o clima agradável, a localização do Palácio na beirada da praia e a atmosfera de cidade pequena criam um evento que me pareceu mais “aconchegante”, aqui em Berlim só o frio já muda bastante a dinâmica, já que todos parecem correr para um café quente a cada intervalo entre sessões. Claro que hoje foi só o primeiro dia e ainda é cedo para formar uma impressão mais forte, mas as diferenças já começam a se fazer notar. (E não estou discutindo qualidade; ambos são bem organizados e corridos.)

Ainda assim, não pude deixar de notar que já na primeira sessão do primeiro dia, a supervisora responsável pela sala já precedeu a exibição para a crítica com uma pequena patada: como a sala estava lotada e várias pessoas ficaram de fora da disputada projeção de Avé, César! (ou “ficaram de fora”; haveria outra 15 minutos depois), a representante do festival pegou o microfone e disparou um “Se suas mochilas e casacos conseguiram um lugar na poltrona do seu lado, parabéns para eles, porque se estava guardando lugar para alguém, vocês já podem ligar pros seus amigos pra dizer que a sala está fechada”.

Até entendo o argumento, mas não precisava de tamanha braveza.


(Tirei essa foto antes da sessão de Ave, César!)

Bom, mas vamos aos filmes – e aqui cabe um esclarecimento: ao contrário do que ocorre nos outros festivais que cubro, o de Berlim estabelece um embargo para críticas sobre filmes que terão suas premières mundiais aqui. Funciona da seguinte maneira: como a crítica vê o longa antes, somos impedidos de publicar qualquer coisa antes que este tenha sua primeira exibição pública. Com isso, dos cinco filmes que vi hoje, só poderei falar sobre dois. Nos próximos dias, à medida que os embargos forem caindo, comentarei o mexicano Tempestade, o alemão/romeno And-Ek Ghes... e o japonês Hee.

O primeiro trabalho foi, como já mencionei acima, a comédia Ave, César!, dos irmãos Coen. O longa é ambientado na “era de ouro” de Hollywood, quando o sistema de estúdios ainda estava em vigor, os astros e estrelas tinham contrato de exclusividade com seus patrões e garantiam, com isso, que suas imagens seriam cuidadas por funcionários devotados a preservar a ilusão do público. É aí que entra o executivo Ed Mannix (Josh Brolin), que se vê preocupado com o desaparecimento do ator Baird Whitlock (Clooney), sequestrado por um grupo de roteiristas comunistas que querem questionar a exploração por parte dos estúdios e o sistema capitalista de modo geral. Enquanto isso, o cowboy Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) é obrigado a assumir um papel em um drama que se passa na alta classe, levando o diretor Laurence Laurentz (Fiennes) ao extremo da impaciência, ao passo que a starlet DeeAnna Moran (Scarlett Johansson), solteira e grávida, representa um problema de relações públicas em potencial.

Como nas comédias mais rasgadas dos Coen, o humor de Ave, César! não é aquele da gargalhada alta, mas do riso de cumplicidade, do tipo “entendi o que eles fizeram ali”. Sim, aqui e ali há uma gag mais escrachada, mas de modo geral a ideia dos cineastas é estabelecer um clima de ironia que nos convida a rir do absurdo do que surge na tela, não de piadas em particular. Assim, é interessante observar como Brolin atua em um registro completamente diferente de seus colegas de elenco; se estes compõem tipos estilizados, quase caricaturais, Brolin mantém o espectador com um pé no plausível, numa performance generosa que também diverte precisamente pelo contraste. (Por outro lado, sempre que Clooney é escalado numa comédia dos Coen, seus maneirismos e caretas exagerados são os mesmos.) E se Johannson é hábil ao contrastar a imagem pública de sua personagem com seus modos grosseiros e sotaque pouco sofisticado fora das telas, o ainda pouco convencido Alden Ehrenreich surge como grande revelação do projeto ao transformar Hobie em um sujeito que combina a estupidez similar à do personagem de Brad Pitt em Queime Depois de Ler com a sagacidade inesperada de uma Marge Gunderson (aliás, Frances McDormand faz uma ponta hilária como uma montadora).

Beneficiado pela fotografia inteligente do fantástico Roger Deakins, Ave, César! permite que os Coen possam brincar com os vários gêneros que surgem como filmes-dentro-do-filme, saltando de westerns a musicais em Technicolor, passando, claro, pelo noir que serve de âncora narrativa para a maior parte da projeção.

Escreverei mais sobre a obra quando estiver para estrear.

Para encerrar, vi também a cinebiografia Eu, Olga Hepnarová, da República Tcheca. Dirigida pelos documentaristas (aqui estreando em “ficção”) Petr Kazda e Tomás Weinreb, a história reconta a história de Olga (Michalina Olszanska), uma motorista de caminhão que, em 1973, atirou o veículo que dirigia sobre um grupo de pessoas que aguardavam o ônibus, atropelando duas dezenas e matando oito. Confessando ter feito a manobra propositalmente, Olga aqui tem sua personalidade dissecada pelos cineastas, que se interessam em investigar suas motivações e suas possíveis disfunções de personalidade.

Neste aspecto, a performance da jovem Olszanska é fundamental – e a atriz não desaponta: concebendo Olga como uma mulher que evita encarar os interlocutores, que adota um caminhar desajeitado e mantém o pescoço projetado para a frente e com a cabeça voltada para baixo quase como uma manifestação física de sua aversão ao contato humano, a garota (que é a cara de Natalie Portman, vale dizer) consegue a proeza de levar o espectador a sentir simpatia por uma figura que claramente exibe uma sociopatia grave.

Enquanto isso, a bela fotografia em preto-e-branco traz uma rigidez nas composições, em planos normalmente estáticos, que reforçam o caráter opressivo do mundo no qual Olga vive. Além disso, a falta de uma trilha instrumental, que é descartada em prol de sons apenas diegéticos, trazem uma secura importante para a narrativa, que ainda discute a brutalidade da pena de morte e as consequências do bullying em um filme que angustia e fascina ao mesmo tempo.

E que apresenta o público a uma atriz fenomenal.

Um grande abraço e bons filmes!

Veja também o videocast sobre o primeiro dia:

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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