O segundo dia do festival de Berlim vai ficar na minha memória como aquele no qual passei duas horas e meia ansioso com o destino de meu caderno de anotações.
Explico: depois de conseguir entrar na disputadíssima sessão do japonês Creepy, decidi sair rapidamente para comprar água, já que ainda faltavam 20 minutos para o início da projeção. Assim, deixei minha bolsa da Berlinale na poltrona e saí, recebendo um cartão que garantiria o direito de entrar novamente. O problema é que em algum ponto entre a porta da sala e a bombonière, o cartão se perdeu – e tive minha entrada negada. Com uns cinco minutos de filme rolando, o gerente finalmente permitiu que entrasse, mas, para meu terror, o lugar (no meio da fila) parecia estar ocupado. Com isso, tive que esperar o término da longa exibição para voltar a buscar a bolsa, que continha não só carregador do celular, cachecol e luvas, mas – o mais importante – um moleskine no qual anoto rascunhos e ideias para contos, textos, etc. (Além, claro, do bloco de anotações nos quais registrei todas as observações sobre os filmes vistos aqui.)
Depois de muita ansiedade e de prometer três pulinhos a São Longuinho, encontrei a bolsa, que havia voltado misteriosamente a marcar o assento que antes eu vira ocupado.
O curioso é que, depois de tudo isso, o gerente da sala me pediu desculpas várias vezes (acho que ele acreditou que eu havia mentido só para tentar ver o filme), embora o culpado fosse eu. Magnanimamente, aceitei os pedidos e o alertei para que não voltasse a repetir o erro. (Mentira.)
Ah, também conheci os leitores Carlos Lopes e Saulo – e quem acompanha minhas coberturas sabe como gosto quando leitores se apresentam.
(Aliás, tenho um agradecimento especial a fazer a dois alunos – e agora amigos queridos – que estão morando em Berlim e que me levaram para passear nos meus dois primeiros dias na cidade: Beatriz Krieger e João Prado. Eles foram tão generosos com seu tempo que... bom, nem sei o que dizer a não ser que espero poder retribuir o favor algum dia.)
Mas vamos aos filmes?
Primeiro, tenho que comentar os três longas de ontem que estavam sob embargo: o alemão And-Ek Ghes..., o mexicano Tempestade e o japonês Hee.
Começemos por este último: dirigido e estrelado por Kaori Momoi, o filme é uma mistura da série In Treatment e de uma profunda estupidez, contando a história de uma mulher que, sentindo-se culpada pela morte dos pais em um incêndio que provocou na infância, volta a se tratar com o psiquiatra que a aconselhara anos antes – agora por ser acusada de matar seu cafetão. Embora traga um ou outro flashback e algumas raras cenas em outros cenários, o filme basicamente se passa todo na sala do médico, que é vivido com uma inexpressividade irritante por Yugo Saso. Sim, a inexpressividade é proposital para se contrapor à histeria contínua da prostituta interpretada por Momoi, mas a combinação, em vez de criar uma dinâmica interessante, acaba apenas por exacerbar a unidimensionalidade de ambas as composições (e o norte-americano Brian Sturges, que fica com o terceiro maior papel do projeto, é provavelmente um dos piores atores que já tiveram a cara-de-pau de se colocar diante de uma câmera). Prejudicado ainda pelo ritmo irregular, Hee se apresenta como uma combinação perigosa de ambição excessiva e incapacidade de fazer jus a esta.
Já o documentário mexicano Tempestade é um esforço que parte de uma ideia simples e a executa de forma eficiente: dirigido por Tatiana Huezo, o filme conta duas histórias reais – ambas narradas pelas mulheres que as viveram. Uma gira em torno de uma recepcionista de hotel que é acusada pela Polícia Federal do México de ser integrante de uma quadrilha que atuava no tráfico humano (uma acusação que os policiais sabiam ser falsa, mas que levaram adiante por precisarem apresentar resultados para a imprensa); já a segunda acompanha uma profissional circense cuja filha desapareceu há mais de dez anos. São, naturalmente, dois incidentes que ilustram a incompetência e mesmo a corrupção das autoridades e a impotência de pessoas comuns diante disso, mas que ganham dimensões adicionais em função da abordagem narrativa de Huezo, que ilustra as narrações não com imagens documentais, mas com paisagens, locações, rostos de mulheres que nada têm a ver com o que está sendo descrito e com um ou outro momento de registro com as entrevistadas. O propósito da cineasta com isso é menos o de levar o espectador a visualizar o que ocorreu e mais o de levá-lo a sentir o que as personagens-narradoras vivem. Trata-se, portanto, de um filme melancólico, triste e desesperançoso que, apesar disso, toca pela humanidade com que encara a tragédia daquelas mulheres.
Outro documentário que me encantou foi And-Ek Ghes... (algo como Um Dia Bom), que acompanha quatro famílias romenas que migram para a Alemanha. Em vez de simplesmente acompanhar os integrantes daquelas famílias e entrevistá-los (o que ele também faz), o diretor Philip Scheffner entrega câmeras para seus personagens e permite que estes registrem o próprio cotidiano. Por um lado, a espontaneidade e a intimidade gerada por esta abordagem é óbvia; por outro, fica patente que os romenos – e, em especial, o patriarca Colorado Velcu – acabam encenando para o projeto. Isto, porém, acaba sendo contornado por Scheffner através de uma decisão muito boa: incluir não só as encenações, mas os preparos destas, que envolvem os ensaios improvisados da família, tomadas que deram errado e as instruções de Colorado ao assumir o papel de diretor (e, não à toa, ele acaba ganhando também o título de co-diretor do documentário em si). Para completar, Scheffner, inspirado pela paixão dos personagens por Bollywood, realiza também as aspirações criativas dos Velcu ao incluir, no longa, uma sequência musical composta e protagonizada por estes, usando seu projeto não apenas como um registro, mas também como uma produção capaz de mudar (mesmo que só um pouco) as vidas daqueles que segue.
Por falar em mudar, eu gostaria de poder alterar minha decisão de assistir ao canadense Boris Sem Beatrice, novo trabalho de Denis Côté. Depois do fraco Curling e do bom Vicki+Flo Viram um Urso, o cineasta aqui atinge o fundo do poço ao tentar fazer um estudo de personagem que acaba se transformando apenas em tortura para o espectador. Protagonizado por um James Hyndman que não parece fazer a menor ideia do que o longa quer fazer com seu personagem, o filme acompanha o Boris do título enquanto este tenta lidar com o estado de saúde de sua esposa (sim, Beatrice), que, profundamente deprimida, entrou em estado catatônico. (Mesmo lidando com simbolismos e metáforas, o diretor parece não entender o básico sobre depressão.) Entregando-se a qualquer mulher que acene interesse, Boris é informado pelo misterioso Desconhecido (Denis Lavant, sempre fascinante) de que Beatrice só retornará ao estado “normal” caso seu marido finalmente “mude” – e o conceito de “mudança” é algo que o diretor-roteirista não se preocupa em explicar, já que o sujeito não só é mulherengo, mas também profundamente egoísta, afastando todas as mulheres presentes em sua vida (a esposa, a mãe e a filha). Para piorar, Côté faz questão de apresentá-lo como um empresário de extrema direita que se desentende com a filha por não concordar com o ativismo social desta, mas o conflito de ideologias não desempenha papel algum na narrativa, sendo acompanhado nesta inutilidade pela informação de que sua esposa era ministra importante no gabinete do primeiro-ministro, que chega a visitá-la em casa. A impressão, com isso, é a de que o cineasta está atirando para todos os lados a fim de tentar encontrar alguma relevância para sua obra. Mas sem sucesso algum.
Consideravelmente melhor é a comédia mexicana Maquinaria Panamericana, de Joaquin del Paso: ambientada inteiramente na fábrica-título, a narrativa tem início acompanhando o início de um novo dia de trabalho preguiçoso por parte dos funcionários que querem apenas bater papo, contar piadas, retocar o esmalte e cochilar. Porém, quando o dono do empreendimento morre subitamente, eles descobrem que a fábrica está falida há anos e que seus salários eram pagos graças às excentricidades do patrão milionário. A partir daí, o longa assume o caráter de alegoria enquanto aquelas pessoas tentam encontrar uma forma de manter a fábrica funcionando, logo fracassando por se entregarem a bebedeiras, conflitos e comodismo. A pergunta é: o que o cineasta queria dizer com isso? Que a subordinação dos empregados é salutar para a vida deles mesmos? Que o capitalismo é uma força destrutiva? Que beber no trabalho pode ser divertido, mas é uma decisão profissional pouco promissora? A produção jamais se decide exatamente com relação à mensagem que quer discutir, buscando também um drama passageiro através de uma subtrama envolvendo um filho bastardo do milionário que cresceu na fábrica e agora trabalha ali como vigia. De todo modo, por se tratar de um esforço curto (os 88 minutos passam rapidamente) e por despertar o riso ocasional – principalmente no primeiro ato -, o filme acaba sendo simpático o suficiente para conquistar o espectador.
Efeito contrário do alcançado por War on Everyone, novo filme do irlandês John Michael McDonagh – e minha maior decepção na Berlinale até agora, já que sou fã dos dois trabalhos anteriores do diretor, O Guarda e Calvário (ambos estrelados por Brendan Gleeson, que também atuou em Na Mira do Chefe, comandando pelo irmão de McDonagh, Martin). Tentando criar uma comédia que combina o senso de humor irlandês de seus trabalhos anteriores a referências ao cinema policial norte-americano da década de 70, o diretor obviamente busca converter os policiais vividos por Alexander Skarsgård e Michael Peña em dois anti-heróis adoráveis, errando grosseiramente a mão e convertendo-os em dois canalhas com humor juvenil. Para piorar, o roteiro do próprio McDonagh abusa da misoginia, da homofobia e do racismo como se estes fossem características dos personagens e não do filme – e como nem graça as piadas têm, as tiradas preconceituosas acabam soando apenas como discurso de ódio. Como se não bastasse, as sequências de ação são dirigidas de forma burocrática, transformando esta produção em um fracasso tão grande que chego a questionar se os sucessos anteriores não teriam sido apenas uma questão de sorte. Espero que não.
O que nos traz ao novo projeto do diretor Jeff Nichols, responsável pelos ótimos Separados pelo Sangue, O Abrigo e Amor Bandido e que, em seu quarto longa, cria mais uma parceria admirável com o excelente Michael Shannon (hum... talvez o erro de John Michael McDonagh tenha sido descartar Gleeson). Iniciando a projeção de forma enigmática, Midnight Special acompanha Roy (Shannon) e Lucas (Joel Edgerton), que sequestram o garotinho Alton (Jaeden Lieberher, que já havia chamado minha atenção em Um Santo Vizinho) e o conduzem a um local secreto com algum objetivo não esclarecido – e, sim, o mistério que acompanha a primeira metade da narrativa é instigante e capaz de gerar uma tensão admirável mesmo que não compreendamos exatamente o que está ocorrendo. É uma pena, portanto, que esta também seja a melhor metade do filme, que vai se tornando menos interessante à medida que vamos descobrindo mais sobre a natureza de Alton e os propósitos de seus captores, chegando a um clímax (que não revelarei, claro) que deveria soar impressionante, mas acaba despertando apenas uma reação de “Hum, era isso?”. Seja como for, Nichols continua a se apresentar como um realizador seguro e que sabe explorar bem a persona estranha de Shannon – e mesmo não sendo um O Abrigo (meu favorito do cineasta), este Midnight Special tem virtudes suficientes para mantê-lo como um dos melhores nomes de sua geração.
E é isso.
Um grande abraço e bons filmes!
Assista também ao videocast sobre o segundo dia do festival: