Muito já foi escrito, comentado, analisado e estudado sobre como este filme, dirigido pelo norte-americano William Friedkin, afetou mentes e corações de milhões de pessoas ao redor do mundo desde o seu lançamento em 1973. Para alguém com menos de 30 anos, e talvez já acostumado com "n" títulos de terror envolvendo possessões demoníacas e similares, talvez seja difícil entender o mal-estar que O Exorcista causou em um público ainda não acostumado a ver tanta violência explícita em um filme lançado por um grande estúdio.
É verdade que O Exorcista abriu novas fronteiras no gênero do horror com suas gosmeiras verdes, profanações, blasfêmias e violência física e psicológica. E também é verdade que o som deste filme explorou de forma inovadora a arte de causar arrepios no público. Tanto que foi merecedor de um Oscar da categoria, e também o vencedor do ano na MPSE.
Mas antes de fazermos uma análise mais detalhada, um pouco de história....
- Como citado anteriormente, este filme foi lançado em 1973 e sua trilha sonora na época estava no formato monofônico.
- Em 1998, o filme foi relançado em home video com imagem e som restaurados. A trilha sonora foi remasterizada para o formato Dolby Stereo (dois canais).
- Em 2000, foi lançada nos cinemas a "A Versão Nunca Vista" também chamada "Versão do Diretor" ou " Versão Estendida" ou ... qualquer outro nome que o mercado tenha inventado para vender mais. O filme teve 11 minutos de cenas adicionais e, para o bem ou para o mal, com novos tratamentos de imagem e som. E a inclusão de alguns efeitos digitais. E tudo supervisionado pelo próprio diretor William Friedkin. Esta opção dividiu parte da crítica e público, além de levantar uma série de discussões sobre a validade de tudo isso. Qual o motivo de se querer mexer em uma obra a ponto de quase desfigurá-la? Dinheiro? Oportunismo?
- O mesmo pode se perguntar sobre a onda infame de alguns anos atrás quando começaram a colorir digitalmente filmes em preto e branco da década de 30 e 40.
Bem... estas questões não são o propósito desta coluna, mas esse não deixa de ser um assunto interessante.
Em relação ao “novo” som de O Exorcista, vou pontuar algumas (não todas, para não ficar muito extenso) diferenças entre o filme de 1973 e a versão mais recente de 2000, lançada em formato 5.1 e com codificações Dolby Digital e DTS. É esta versão que posteriormente saiu nos formatos DVD e Blu-Ray.
É interessante notar que nomes de peso foram convocados para este redesenho sonoro do filme, gente do porte dos oscarizados Richard King e Michael Minkler.
Como citado anteriormente, o som de O Exorcista foi inovador para a época, se utilizando de recursos tanto tecnológicos quanto criativos que amplificaram a sensação de terror provocada pela história da menina Regan (Linda Blair). Existem lendas de pessoas que trabalhavam em cinemas e que ficavam bastante desconfortáveis só de ouvir o filme nos saguões...
E, verdade seja dita, existe muita sutileza sonora em O Exorcista. Foi preciso repassar o filme algumas vezes para perceber os detalhes. Mas o interessante aqui é como estes não são realmente ouvidos de imediato pelo público, mas sim inconscientemente sentidos. E o efeito psicológico destes sons associados às imagens torna o todo bastante eficaz. Não é a toa que O Exorcista ainda aparece em listas de "Melhores Filmes de Terror de Todos os Tempos".
A mixagem refeita em 2000 aproveitou bastante material do filme original. Às vezes acrescentando detalhes em determinadas cenas, outras vezes as refazendo totalmente.
Mas vamos ao que interessa:
- Nas cenas iniciais, filmadas no Iraque, já é possível perceber a diferença entre as mixagens do filme original de 1973 e a versão de 2000. As ambiências das centenas de trabalhadores escavando o deserto foram completamente refeitas, com adição de novos elementos da técnica foley e alguns efeitos sonoros. E os remixadores, obviamente, distribuíram os sons ambientes nos diversos canais agora disponíveis.
- Quando o Padre Merrin (Max von Sydow) descobre um pequeno ídolo esculpido em pedra, é possível ouvir um vento ameaçador e frio, contrastando com o calor da região. Na mixagem original este vento é bem discreto. Na versão de 2000 é mais destacado, beirando o exagerado.
- Interessante perceber que na versão original as ambiências, os sons das ruas e da cidade no geral são bem mais altos, mais agressivos. Na versão de 2000 esses mesmos sons foram atenuados.
- Há um pequeno momento do uso do som como elemento narrativo: em um escritório, Merrin analisa pequenas peças arqueológicas. Quando pega o mesmo ídolo de pedra encontrado na cena anterior, um barulhento relógio de pêndulo ao seu lado subitamente para de funcionar. Aqui o silêncio é o elemento gerador de tensão. Genial!
- Ao se aproximar da estátua gigante de um ídolo de pedra, nas cenas finais no Iraque, o mesmo vento frio anteriormente ouvido ressurge quando o padre a vê pela primeira vez. A seguir, vemos e ouvimos dois cachorros começarem a brigar furiosamente. Os latidos agressivos dos animais associados à figura grotesca e demoníaca causam um efeito surpreendente.
Esta cena também foi totalmente reconstruída sonoramente. Tudo foi substituído: os ventos, o foley, a briga dos cachorros e ainda foi incluído um pequeno trecho de música dissonante que na versão original não existia. Na minha opinião o original soava melhor.
- Já avançando bastante, o filme agora se passa em Georgetown, Washington, e é possível estabelecer um momento específico em que o desenho de som modifica suas características - a partir do momento que a menina Regan relata à sua mãe (Ellen Burstyn) que sua cama sacudiu durante a noite, a atmosfera sonora do filme muda - portas e escadas rangem mais, são ouvidos mais eeries (ambiências de fundo comuns em "filmes de casa mal assombrada") e ventos. E essa característica só tende a crescer até o final do filme.
- Uma transição sonora bastante inovadora para a época pode ser exemplificada na cena em que Regan é hipnotizada. Ao final, ela ataca o hipnotizador, é detida por outro médico e vai ao chão gritando raivosamente. Esse seu grito é ecoado e "invade" a cena seguinte, um grande plano aberto de uma pista de corrida. Este tipo de transição, além de ser dramaticamente eficaz, vai se repetir em outros momentos. E chegou a virar um clichê de tanto que foi imitada em "n" produções posteriores.
- Na cena seguinte temos um bom exemplo de uma diferença sutil (mas sutil mesmo!) entre a versão de 1973 e versão do diretor de 2000. Em uma sequência de um diálogo entre o Padre Karras (Jason Miller) e o inspetor Kinderman (Lee J. Cobb), ambos estão ao lado de quadras esportivas onde algumas pessoas estão jogando tênis. Interessante perceber que as ambiências originais de 1973 foram aproveitadas neste trecho. Mas em dois momentos em que os personagens encostam no alambrado que circunda estas quadras, os toques de suas mãos no arame somente são ouvidos na versão de 2000. Este é um exemplo positivo da versão nova. No caso, foram acrescentados alguns elementos sonoros que enriqueceram a cena.
Mas infelizmente neste mesmo trecho do filme temos um exemplo negativo do novo desenho de som. Na versão nova, uma acorde grave, "tenebroso", é acrescentado ao diálogo. Uma opção infeliz, redundante e desnecessária que não tem outra função a não ser induzir o público. Neste caso o diálogo e as atuações já seriam suficientes para gerar a tensão necessária. Ponto para a versão original.
- A primeira conversa entre o Padre Karras e Regan é cheia de momentos sonoros admiráveis. O grande destaque é a voz da menina possuída. Ou melhor, vozes. São camadas e mais camadas sobrepostas de variadas formas de respirações, sussurros e gemidos. De forma criativa e simples, esta sobreposição passa a sensação de que mais de um demônio se hospeda no corpo da jovem. Mais detalhes da voz de Regan possuída um pouco mais pra frente...
- Agora um momento que infelizmente desconfigurou todo um trabalho criativo e complexo da versão de 1973: em uma cena breve, Kinderman inspeciona a base da escadaria onde ocorreu a morte do diretor de cinema Burke (Jack MacGowran). Não há diálogos, e ao fundo podemos ouvir toda uma tessitura sonora composta de sons urbanos: tráfego distante, um motor de trator, latidos e vento. É notório como estes sons se entrelaçam, formando uma teia sonora que funciona como amplificador da tensão da cena. Pois bem, na versão de 2000 este trecho foi todo reconstruído, perdendo-se todo o trabalho criativo do filme original.
- Agora um exemplo de manipulação sonora a favor da narrativa: quando Regan, após Karras jogar água benta sobre ela, começa a falar uma língua completamente estranha, o uso de múltiplas vozes em velocidades e tonalidades diferentes, adicionados a respirações, uivos e gemidos, causa um efeito arrepiante. Na versão de 2000, foi adicionado o canal de sons graves a esta parte.
- Na cena em que o Padre Merrin está para adentrar pela primeira vez ao quarto de Regan, na nova mixagem foi incluído um trecho de música que na versão de 1973 não existia. Curioso é que esta música está presente somente nos canais surrounds. Mas esta inclusão também soa artificial, um elemento desnecessário.
Sobre este primeiro encontro entre Merrin e Regan, duas observações bem interessantes:
- A expansão sonora da versão do diretor para os 6 canais de som disponíveis estranhamente ocorre somente em algumas partes. Isto cria momentos, no mínimo, bizarros - só para ficar em um exemplo, durante o exorcismo, quando a cama sacode violentamente, toda a balbúrdia sonora se concentra nos canais centrais. Os canais traseiros ficam completamente mudos. E também chama a atenção a pouquíssima utilização do canal de graves.
- Na versão original do filme, os gemidos, gritos, xingamentos e blasfêmias de Regan estão muito mais altos que na versão de 2000. Em alguns momentos a voz dela se sobrepõe a dos padres. Na versão nova, os mixadores inverteram esta lógica, tirando muito do efeito perturbador do original. Mais um exemplo de que a nova mixagem não fez muito bem ao filme.
QUANDO O DIABO FALA
O ponto alto em termos sonoros do filme é sem dúvida a voz do demônio (ou demônios) que perturba a personagem de Linda Blair. Inicialmente o diretor William Friedkin queria usar a voz da própria atriz alterando-a eletronicamente. Funcionou em alguns trechos. É parte dela que ouvimos na controversa cena da masturbação (ou autoflagelação) com um crucifixo.
Friedkin sabia que a voz do demônio precisava ser algo sobrenatural, forte, única e vinda de alguém com experiência de interpretação vocal. Ele encontrou essa voz em Mercedes McCambridge, atriz de rádio, TV, cinema e teatro. Na época ela estava com 56 anos e sofria de bronquite. Mas logo revelou-se a escolha perfeita por causa do seu timbre rouco, profundo e, uma característica fundamental para o filme, andrógino. Difícil distinguir se o demônio tinha uma voz masculina ou feminina. Para conseguir este efeito, McCambridge ingeriu grandes quantidades de ovos crus, álcool e cigarros. No estúdio de gravação ela pediu para ser amarrada pelos pés e mãos (de forma similar à personagem de Linda Blair) e ainda exigiu a presença de um padre para resguardá-la. Pelo jeito foi uma experiência assustadora. William Friedkin declarou em várias entrevistas que estas sessões com McCambridge ainda hoje lhe dão pesadelos. Agora um detalhe off-topic: Mercedes McCambridge não teve o seu nome nos créditos na época do lançamento, sendo esta injustiça reparada somente nos relançamentos de 1998 e 2000.
OUTRAS CURIOSIDADES
- O compositor brasileiro Eumir Deodato teve uma de suas músicas usadas sem permissão na cena da festa na casa da mãe de Regan. Ele ameaçou processar a Warner Brothers mas chegaram a um acordo sem precisar acionar a justiça.
- William Friedkin em mais de uma entrevista comentou como ficou impressionado com um mexicano que fazia parte da equipe de som. Gonzalo Gavira já havia trabalhado em filmes de Alejandro Jodorowsky e não falava uma palavra em inglês. Friedkin o chamava de "mexicano descalço". Nas sessões de gravação de foley, quando estavam para gravar a cena em que Regan vira o pescoço 180 graus. Gavira pediu uma carteira emprestada de alguém com alguns cartões de crédito dentro. Aproximou-a do microfone, passou os dedos rapidamente na carteira aberta e pronto - esse era o som do pescoço de Regan se retorcendo. E é isso que ouvimos no filme. Friedkin ficou boquiaberto.
Bem-vindo ao mundo do "foley artistry", Mr Friedkin!
É editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio LUX SONORA - Edição e Desenho de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.