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Festival de Cannes 2016 - Dia 09 Festivais e Mostras

Com o agradecimento de hábito à LATAM Airlines Brasil pelo apoio logístico oferecido à minha cobertura do festival, passo aos filmes vistos no nono dia do evento:

Graduation (Bacalaureat), de Cristian Mungiu

Marius é um médico dedicado e ético que, atuando em uma pequena cidade da Romênia, tem um profundo orgulho da filha, que está prestes a ganhar uma bolsa para estudar na Inglaterra. Infelizmente, no dia em que suas provas finais têm início, a garota é atacada por um estranho e, abalada, vê suas notas caírem a ponto de arriscar a oportunidade, o que leva seu pai a buscar a ajuda de alguns conhecidos que talvez possam fraudar os exames.

Segundo longa romeno exibido em competição em Cannes, Bacalaureat é, como Sieranevada, um trabalho eficaz cuja força dramática surge graças à observação sensível do comportamento de seus personagens e que esteticamente é construído a partir de planos extensos e de uma busca pelo “realismo” que descarta trilhas não-diegéticas e movimentos de câmera elaborados que chamem a atenção para si mesmos.

Escrito e dirigido pelo excelente Cristian Mungiu (responsável pelos magníficos Além das Montanhas e 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias), o longa gira em torno de indivíduos que, mesmo honestos na maior parte de suas ações, sucumbem à tentação de perseguir uma solução questionável para certos dilemas – e a justificativa que encontram para si mesmos normalmente envolve culpar o país, o governo, o “sistema” ou os outros. É uma postura mais comum – e, de certa maneira, humana – do que imaginamos e que é manifestada não em grandes contravenções, mas em pequenas e prosaicas transgressões: o suborno a um guarda de trânsito, a comissão paga por um agente funerário a um paramédico para saber quando um paciente morre, a influência exercida para favorecer um amigo diante da burocracia de algum departamento e assim por diante.

Uma postura que se mantém propositalmente cega ao fato de que, ao dizermos algo como “mas, infelizmente, é assim que o mundo funciona”, estamos apenas garantindo que este permaneça assim.

 

Gimme Danger, de Jim Jarmusch

Eu poderia ter esperado qualquer coisa de um filme sobre The Stooges dirigido por Jim Jarmusch, menos que fosse convencional como este Gimme Danger. Dependendo pesadamente das burocráticas “cabeças falantes” que são marcas registradas de todo documentário sem imaginação ou ambição, o longa reconta a trajetória da banda desde sua formação, em 1967, concentrando-se particularmente em sua rápida decadência, já que, apenas seis anos depois, Iggy Pop e seus companheiros estavam fazendo shows em porões apertados em troca de bebidas ou drogas.

Sem energia e imaginação, Gimme Danger chega a empregar vários letreiros extensos que preenchem lacunas da história do grupo, incluindo, ainda, cenas curtas de filmes e programas antigos da TV como comentário “bem-humorado” de certas histórias narradas pelos entrevistados.

Ou “histórias”, já que algumas delas chegam ao ponto de envolver “encontros” como aquele que, descrito pelo vocalista do Stooges, talvez tenha envolvido John Wayne, já que um carro que talvez fosse o do ator passara ao seu lado décadas antes.

Ora, é necessário apontar os problemas desta falta de rigor em um documentário?

 

Pericle il nero, de Stefano Mordini

Péricles é um capanga de um grupo mafioso que, baseado na Bélgica, é encabeçado por um italiano idoso e implacável. Despachado pelo chefe para lidar com indivíduos que se tornaram um problema para a quadrilha, Péricles não usa facas ou revólveres, mas uma ferramenta atípica: seu pênis.

Em outras palavras, ele estupra suas vítimas (invariavelmente do sexo masculino) para puni-las através da “humilhação”.

Sim, a descrição acima pode soar absurda – e há um elemento de absurdo nesta produção italiana dirigida por Stefano Mordini -, mas resulta em um estudo de personagem moderadamente intrigante que investiga as motivações, as ambições e as fraquezas de um homem cuja existência foi definida por outras pessoas desde seu nascimento.

Exposto em sua origem literária através da narração em off frequentemente desnecessária, mas beneficiado pela performance minimalista bastante eficaz de Riccardo Scamarcio (que esteve no excelente Polissia e no péssimo Maravilhoso Boccacci), Péricles é uma obra que, mesmo com o desfecho excessivamente conveniente, é curiosa o bastante para não ser esquecida assim que a projeção acaba.

 

O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki (Hymyilevä mies), de Juho Kuosmanen

Na década de 60, o boxeador finlandês Olli Mäki capturou momentaneamente a imaginação de seu país ao disputar o título da categoria peso-pena numa luta que – algo raro para a Finlândia – teve lugar em Helsinque.  Menos interessado no combate em si do que na personalidade do atleta, o diretor Juho Kuosmanen acompanha, neste filme, as semanas que levaram ao encontro entre Mäki e o rival norte-americano Davey Moore.

Rodado em um preto-e-branco que empresta um ar quase documental ao longa, O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki traz o bom ator Jarkko Lahti como o personagem-título, compondo-o como um homem modesto que não se deixa impressionar pela atenção que passa a receber dos conterrâneos e do ambicioso (e competente) agente Elis Ask (Eero Milonoff). Mais interessado em passar o maior tempo possível ao lado da namorada Raija (Oona Airola, encantadora em seus modos displicentes), Olli é submetido à tensão não só da luta, mas da necessidade de perder peso para se encaixar na categoria que disputa.

Baixinho a ponto de ser frequentemente subestimado pelos que o cercam (neste aspecto, a pequena altura de Lahti é tão relevante para a narrativa quanto o 1,90 m de Hiroshi Abe era para o After the Storm de Kore-eda), o protagonista mantém uma expressão corporal sempre na defensiva, com a cabeça projetada para a frente e os braços tensos, como se encarasse o mundo ao seu redor como um ringue – e é revelador como só se mostra totalmente à vontade ao lado da amada.

Mas talvez o mais curioso neste ótimo trabalho seja o fato de que boa parte do impacto emocional que provoca vem justamente de seu título. Algo que, longe de ser um demérito, ilustra apenas como uma obra depende de todos os seus elementos para funcionar.

 

The Neon Demon, de Nicolas Winding Refn

The Neon Demon é uma mistura de Dario Argento, Stanley Kubrick, David Lynch e lesão cerebral – e se isto soa como uma combinação interessante, acredite: não é. Dirigido por Nicolas Winding Refn, responsável pelos ótimos Bronson e Drive, esta produção é vitimada por uma arrogância proporcional à sua estupidez, sugerindo que vencer a Palma de Ouro de melhor diretor por Drive foi uma das piores coisas que poderiam ter ocorrido à carreira do dinamarquês.

E isto vem de alguém que, ao contrário da maior parte da crítica, gostou de Apenas Deus Perdoa.

Embora escrito a seis mãos (Refn, Mary Laws e Polly Stenham), The Neon Demon tem um fiapo de história: a adolescente Jesse (Elle Fanning), que acabou de completar 16 anos, muda-se para Los Angeles para tentar se tornar modelo profissional. Atraindo imediatamente a atenção de uma poderosa agente (Christina Hendricks), de um célebre fotógrafo (Desmond Harrington) e de um famoso estilista (Alessandro Nivola), ela se torna amiga da maquiadora Ruby (Jesse Malone) e desperta a inveja das modelos Sarah (Abbey Lee) e Gigi (Bella Heathcote). Ah, sim: Keanu Reeves também aparece em um papel minúsculo como o gerente do hotel barato no qual a protagonista passa a morar, mas não me perguntem por que ele aceitou participar do projeto.

Trazendo uma chuva de glitter já durante os créditos iniciais e que resume perfeitamente o filme em si (muito brilho para pouca substância), a produção é magnífica em seus elementos puramente estéticos: cada plano, por mais trivial que pareça, exibe um apuro que sugere horas de preparação antes do “Ação!”, seja um take de três minutos em uma passarela, seja um plano-detalhe de um dedo tocando um objeto. Aliás, Refn, o designer de produção Elliott Hostetter e a diretora de fotografia Natasha Braier criam uma série de tableaux vivants (pinturas vivas, digamos) que impressionam pelas cores, formatos e composições (um exemplo é a aquele no qual Fanning é vista sentada em uma sala iluminada e ladeada por quatro modelos que aguardam um teste).

Ao longo da projeção, confesso, tive várias vezes o desejo de pressionar algum botão do tipo “Print Screen” para poder levar aquelas imagens para casa – quadros como o que traz um personagem deitado numa espécie de cova rasa no meio de um campo impossivelmente verde e de flores roxas ou aquele no qual vemos a silhueta de Jesse através de uma parede em um longo zoom out. E é realmente curioso perceber os conceitos muitas vezes absurdos por trás de passagens como a que traz uma stripper que, vestida com uma daquelas roupas de couro associadas ao sadomasoquismo, parece flutuar no meio de uma boate, como se fosse resultado de um cruzamento entre David Copperfield e Dita Von Teese.

Infelizmente, embora belíssimos, mesmo estes planos acabam sendo sabotados pela abordagem autoindulgente de Refn, que não resiste prolongar ao máximo cada um deles, abusando também do slow motion, dos zooms e dos travellings e panorâmicas que se movem com uma preguiça irritante. Enquanto isso, a lógica das cores se revela óbvia, mesmo que coerente: Jesse usa basicamente roupas claras que refletem sua inocência, Ruby jamais abandona as escuras (adivinhem o motivo) e Hendricks, que representa uma indústria destrutiva (na visão do longa, ao menos) se cobre de roxo. Para completar, em um desfile a protagonista se vê no interior de um triângulo invertido (símbolo feminino) azul que subitamente se torna vermelho quando ela permite que sua vaidade tome conta.

Quanto ao elenco, seria uma discussão inútil tentar analisar suas performances, já que todos são tratados menos como atores e atrizes e mais como objetos de cena por Refn (aliás, o fotógrafo interpretado por Harrington poderia ser um avatar do diretor). De todo modo, é impossível negar que The Neon Demon não existiria caso o cineasta não tivesse conseguido encontrar uma atriz que encarnasse a beleza descomunal da personagem principal – e Elle Fanning é deslumbrante, sendo também eficaz ao encarnar sua ingenuidade (e é tudo que pode ser dito de sua interpretação, já que, como dito acima, esta não interessa de verdade).

Embalado por uma trilha eletrônica que oscila entre o cafona e o irritante, o longa por vezes remete mais a um vídeo softcore, explorando os corpos de suas atrizes com um olhar tão objetificante que se torna impossível alegar que a obra em si esteja criticando esta postura no mundo da moda. Para completar, o realizador demonstra uma tendência quase adolescente de provocar o público, já que inclui passagens supostamente chocantes (vocês as reconhecerão quando assistirem ao filme) que, gratuitas, parecem apenas querer atrair controvérsia.

Criticando a futilidade da obsessão pela beleza e a estupidez da busca para se alcançar um padrão idealizado impossível sem photoshop ou ampla cirurgia plástica, The Neon Demon aparentemente acredita estar dizendo algo relevante, mas que é apenas de uma obviedade ridícula. Ainda que apresentada com cores tão lindas.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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