Todo ano, quando nos aproximamos da temporada de premiações, faço a ressalva de que os troféus distribuídos em Hollywood têm muito menos a ver com a qualidade dos filmes e dos artistas do que com dinheiro e prestígio. Há eventos que possuem mais credibilidade do que outros, claro, mas mesmo os mais respeitados devem ser apreciados com certas ressalvas.
Na verdade, há toda uma lógica na cronologia das dezenas de prêmios que são anunciados ao longo da temporada, que começa a rigor no fim de Outubro, quando os indicados ao Gotham Awards (voltado para filmes independentes) são anunciados, e vão até fevereiro, quando ocorre a cerimônia do Oscar. Entre os dois, há o anúncio do National Board of Review, das diversas associações de críticos (NYFCC, LAFCA, OFCS – da qual faço parte -, BFCA, e várias outras) e, claro, o Spirit Awards (também dos independentes e que ocorre um dia antes do Oscar), o BAFTA, o Satellite, o Globo de Ouro e mesmo o Framboesa de Ouro. Mas ainda mais importantes são os prêmios distribuídos pelas guilds (espécie de sindicatos das categorias), já que muitos dos seus membros são também votantes do Oscar: SAG (atores), DGA (diretores), PGA (produtores), WGA (roteiristas), ACE (montadores), ADG (designers de produção/diretores de arte), CDG (figurinistas), e assim por diante. Já do ponto de vista puramente artístico, há os festivais que ocorrem durante o ano: Cannes, Berlim, Veneza, Sundance e alguns outros.
Sim, a temporada de premiações envolve muitos eventos – e há um motivo para isso: dinheiro. Assim como as eleições são sempre uma época na qual a indústria da publicidade se movimenta, a temporada de premiações move milhões e milhões de dólares em campanhas, estratégias, contraestratégias e todo tipo de evento imaginável. Não é à toa que se antes o Oscar era basicamente o único a ter destaque mundial, agora várias cerimônias são televisionadas e a própria temporada teve sua duração estendida. Quanto mais tempo de campanha, mais os estúdios gastarão em anúncios nas trades (Variety, Hollywood Reporter) e nos sites lidos pela indústria (MovieCityNews, Deadline Hollywood, Awards Daily e dúzias de outros). Aliás, boa parte dos sites voltados para o jornalismo de entretenimento nos Estados Unidos dependem principalmente desta temporada para garantir sua sobrevivência ao longo do ano – e basta você entrar em qualquer deles entre novembro e fevereiro para ser inundado por anúncios “For Your Consideration”.
Mas todos estes prêmios são considerados meros “precursores” do objetivo final: o Oscar. A cada indicação em um evento, as chances de que o filme melhore suas possibilidades de chegar à estatueta dourada aumentam, já que os eleitores da Academia passam a prestar mais atenção na trajetória deste ou daquele longa.
O que é preciso lembrar é que, todo ano, centenas de títulos se tornam elegíveis – e a única forma de filtrar o ruído, já que é impossível assistir a tudo, é acompanhando os filmes que vêm se destacando. É por isso que qualquer um que preste atenção durante a temporada será perfeitamente capaz de identificar quem provavelmente será indicado (algo que faço há mais de 15 anos aqui no Cinema em Cena). Assim, a ideia de que o Globo de Ouro é o “principal termômetro” para o Oscar é tão equivocada que só pode ser defendida por quem não segue a indústria, já que suas indicações (e sua cerimônia) ocorrem muito depois que a corrida já foi definida pelas guilds e associações de críticos.
(Mas falarei com mais detalhes do Globo de Ouro mais abaixo.)
Então quanto custa uma campanha para o Oscar? Bom, há vários gastos inevitáveis: em primeiro lugar, os estúdios enviam cópias dos filmes para todos que votam em alguma premiação (eu recebo pacotes de screeners todos os anos) – e só com isso a estimativa é de 850 mil dólares gastos por filme. Além disso, há exibições acompanhadas por recepções em Los Angeles e Nova York, onde se concentram boa parte dos eleitores da Academia, e nas quais, além da projeção do filme, há jantares luxuosos durante os quais o elenco e os membros mais importantes da equipe confraternizam com os convidados. (Quando O Discurso do Rei concorreu, por exemplo, o diretor Tom Hooper, que é britânico, se mudou para Los Angeles e ficou três meses fazendo campanha em festas, recepções, projeções especiais e outros eventos. Venceu.)
Outra estratégia dos estúdios – já que nos últimos anos a Academia proibiu eventos de campanha com comidas e bebidas durante a segunda fase de votação (a que determina os vitoriosos) – é a de fazer “homenagens” a determinados integrantes do elenco. Por exemplo: promovem uma festa para celebrar a carreira de Leonardo DiCaprio e convidam meia Los Angeles, garantindo que muitos integrantes da Academia comparecerão. A rigor, estão apenas honrando DiCaprio – mas se no processo os convidados se sentirem estimulados a votar no ator por seu último filme, melhor ainda.
No total, a estimativa é de que os estúdios gastem no mínimo três milhões de dólares na primeira fase da campanha – um valor que, na fase final, pode chegar a incríveis 10 milhões de dólares ou mais. (Em 1998, a Miramax gastou 15 milhões de dólares na campanha para o Oscar de Shakespeare Apaixonado. Que acabou derrotando o favorito, O Resgate do Soldado Ryan.) Em outras palavras: por melhor que um filme seja, jamais terá chance de uma indicação caso o estúdio responsável se recuse a investir milhões para garantir que isso aconteça. De acordo com uma matéria publicada no New York Times em janeiro de 2015, profissionais especializados da área estimam que os estúdios de Hollywood gastem centenas de milhões de dólares por ano, dependendo do nível da competição. A coisa ficou tão maluca nos últimos anos que passou a haver campanha até para o segmento In memoriam, que relembra os artistas mortos no ano anterior.
E o que os estúdios ganham com isso? Depende. Em primeiro lugar, há o efeito na bilheteria: depois de vencer o Oscar no ano passado, por exemplo, Spotlight teve um aumento de 140% na venda de ingressos nos Estados Unidos e outros 100% no restante do planeta. Mais precisamente, um Oscar de Melhor Filme tende a adicionar uma média de 14 milhões de dólares à bilheteria do vencedor; o de Melhor Diretor, cerca de 11 milhões. Além disso, o Oscar aumenta a venda em home vídeo (DVD, Blu-ray), permite que o estúdio cobre mais pelos direitos para exibição em TV e streaming e traz prestígio na hora de negociar contratos com atores e diretores. Em outros casos, um estúdio investe na campanha por um ator específico a fim de fortalecer as relações com este e garantir sua participação em projetos futuros. Mas, mais uma vez, a palavra-chave é “dinheiro”.
Porém, se o Oscar traz prestígio, o Globo de Ouro não oferece nenhum. Todos os anos, sou obrigado a explicar a mesma coisa para quem me segue em redes sociais: em Hollywood, o Globo de Ouro é considerado uma piada. A Hollywood Foreign Press Association, que distribui o prêmio, é composta por cerca de 95 “jornalistas” (não “críticos”, ressalto, mas “jornalistas”) que passam o ano indo a junkets, entrevistando celebridades e cujos currículos, na maioria das vezes, são vergonhosos.
(Parênteses importantíssimos: a brasileira Ana Maria Bahiana, que faz parte da HFPA, é uma das poucas exceções ao que expus acima. Trabalhei com Ana em 2009, num período em que morei em Los Angeles, e posso assegurar que se trata de uma das melhores profissionais que já conheci e cuja velocidade ao escrever só é rivalizada pela qualidade do que escreve. Recentemente, um leitor apontou que ela respondeu às minhas críticas à HFPA sugerindo se tratar de “inveja”, mas considero apenas natural que ela queira defender a associação da qual faz parte. Isto não muda minha admiração por ela como pessoa e como profissional. Se seus colegas fossem mais parecidos com ela, o Globo de Ouro não teria passado por todos os escândalos que mencionarei abaixo.)
Ao longo das décadas, o Globo de Ouro (e a HFPA) ganhou fama de aceitar subornos para definir seus indicados e vencedores – uma fama agora tão solidificada que é comum que apresentadores, atores e diretores façam piada sobre isso durante a cerimônia. Um exemplo recente foi Denzel Washington, que, ao aceitar o prêmio Cecil B. DeMille, contou – em seu discurso – como o produtor de Tempo de Glória explicou que ele deveria comparecer a uma recepção promovida para a HFPA: “Ele me disse que eles iam ver o filme. Nós vamos alimentá-los. Você vai tirar fotos com todo mundo. Você vai segurar as revistas, tirar fotos e ganhar o prêmio. Eu ganhei naquele ano.” (O vídeo pode ser visto aqui.)
Mas a história é mais antiga ainda: em 1982, uma das vitórias mais absurdas aconteceu no Globo de Ouro quando a pavorosa Pia Zadora foi eleita “Revelação do Ano” por Butterfly (ela também ganhou o Framboesa de Ouro). O que se descobriu depois é que o marido de Zadora, o milionário Meshulam Riklis, havia levado os membros da HFPA para Las Vegas, onde ele tinha um cassino, e também convidado vários deles para almoços generosos. (O escândalo abalou tanto a reputação do prêmio que a emissora CBS, que o transmitia, cancelou o contrato.)
Aliás, a estratégia envolvendo Las Vegas parece funcionar bem com o grupo, já que a Sony, em 2011, também levou boa parte de seus integrantes para um fim de semana na cidade, com direito a um show de Cher. Naquele ano, o estúdio estava promovendo dois filmes: o ridículo O Turista e o ainda-mais-ridículo Burlesque (estrelado por... Cher). Resultado: O Turista foi indicado como Melhor Filme, Ator (Johnny Depp) e Atriz (Angelina Jolie), ao passo que Burlesque garantiu indicação como Melhor Filme e duas de Canção Original. (Em 1992, a Universal também atuou como agência de viagens e levou várias pessoas do grupo para Paris para um encontro com Al Pacino. Perfume de Mulher foi indicado em quatro categorias e venceu em três, incluindo Melhor Ator. Já em 1999, Sharon Stone presenteou todos os membros da entidade com relógios de ouro a três dias do fim das indicações e... foi indicada por A Musa. Porém, quando a imprensa descobriu o que havia ocorrido, a repercussão foi tamanha que a HFPA obrigou todos a devolverem os relógios. E Stone não venceu o prêmio.)
Mas fica pior: em 2011, a empresa de relações-públicas do veterano Michael Russell, que trabalhou para o Globo de Ouro por 17 anos, processou a HFPA por quebra de contrato e, no processo, declarou que havia sido afastada por tentar eliminar certas práticas corrompidas da associação. Russell alegou formalmente, por escrito, que membros da HFPA tinham o hábito de aceitar “dinheiro, férias pagas e presentes dos estúdios em troca de indicações para o Globo de Ouro”. O processo afirmava, ainda, que a HFPA chegava a cobrar uma taxa de produtores que queriam apenas apresentar seus filmes para o grupo a fim de pedir votos.
Porém, tudo isso está no passado, certo? Errado. Ano passado, Perdido em Marte gerou polêmica ao ser incluído pelo Globo de Ouro na categoria “Comédia”. A decisão provocou questionamentos por parte da imprensa, mas a razão por trás dela parece ser clara: como a categoria “Drama” estava apinhada de títulos fortes, Perdido em Marte provavelmente ficaria de fora da disputa – e, sem ele, a cerimônia não teria Matt Damon, Ridley Scott e os demais astros do longa. Solução: colocá-lo como “comédia” (?!), onde teria maiores chances. E tinha mesmo – tanto que acabou vencendo. Na época, o diretor Paul Feig (Caça-Fantasmas, Missão Madrinha de Casamento) protestou publicamente contra a premiação, mas sem sucesso.
Ah, sim: e este ano, Tom Ford enviou duas garrafas de seu caríssimo perfume para todos os membros da HFPA. Mais uma vez uma situação constrangedora foi criada e todos tiveram que devolver uma garrafa. (Sim, só uma.) Ford foi indicado como diretor e roteirista por Animais Noturnos.
Assim, de agora em diante, em vez de perguntar se algum filme “merece” prêmios, talvez seja mais recomendável avaliar qual é a verba de campanha da qual ele dispõe.
Um grande abraço e bons filmes!
09 de Janeiro de 2017
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