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ENTREVISTA Joaquim e Julio: dois séculos, as mesmas inquietações Brasil em Cena

O rosto de Julio Machado começou a se tornar familiar às plateias brasileiras de produções audiovisuais há pouco mais de três anos, quando ele iniciou sua participação em filmes nacionais e atuou em duas novelas (“Império” e “Velho Chico”). Mas a carreira do ator paulista de 36 anos, nascido na cidade de Jundiaí, começou quando ele tinha 12 anos, no teatro.

“Ensaiávamos um ano inteiro para apresentar um fim de semana. Foi uma escola maravilhosa, fundamental para a minha formação”, lembra o ator que, depois, mudou-se para São Paulo, inicialmente com planos pouco definidos de estudar Jornalismo. “Eu não conseguia ainda entender que era possível ser ator como profissão e percebi que, em São Paulo, tão próximo de Jundiaí, havia pessoas que viviam de teatro e fui desmistificando essas ideias”, comenta.

Foi só quando se mudou para o Rio de Janeiro, para fazer a peça “Incêndios”, com Marieta Severo, que começou a receber convites para fazer audiovisual. A oportunidade de viver o protagonista de “Joaquim” surgiu com um e-mail, da produtora de elenco Maria Clara Escobar. “Ela perguntava se eu teria interesse em participar da seleção para um filme do Marcelo (Gomes). E eu já tinha a maior admiração por ele. ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’, dez anos antes, foi um filme dele que eu assisti várias vezes, no cinema, fiquei obcecado por aquilo”, comenta o ator.

Julio Machado falou com exclusividade ao Cinema em Cena, no dia em que “Joaquim” teve sua primeira exibição pública no Brasil, na pré-estreia em São Paulo.

Cinema em Cena - Logo no início de “Joaquim”, em uma cena a um passo da violência, a personagem Preta/Zua corta com um facão os longos cabelos do protagonista. A partir do descarte desse símbolo visual tão marcante na figura de Tiradentes, como foi composição do seu personagem, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico?

Julio Machado - A cena se dá de uma forma quase simplória: ele pegou piolho e teve que cortar o cabelo, a gente é que completa com uma leitura nossa, de que o Tiradentes está sendo despido de um símbolo visual forte para a imagem que nós fazemos dele. É uma proposta fantástica de desconstruir aquela iconografia Jesus Cristo-mártir. Os sete anos em que trabalhou no filme serviram para o Marcelo ter uma ideia muito clara do que ele queria e, quando ele formou a equipe, isso estava definido. E foi justamente esse Joaquim desconstruído que me encantou. A ideia de contar a história desse personagem desse jeito passou por toda a equipe, e isso gera uma força invisível impressionante. Cinema é a arte do diretor. Teatro é a arte do ator: ali, o ator é dono do espaço-tempo. No cinema, quem vai fazer isso é o diretor. Aí eu saquei que, para fazer cinema, não há como fazer com prazer se você não confiar plenamente no diretor. Quando eu entendi que o material mais honesto que eu poderia dar para ele era o material do Julio, quando eu entendi que o Julio, cidadão em 2017, sofre das mesmas questões desconfortáveis e desrespeitosas, de dento de uma estrutura de sociedade, eu entendi que era só “brincar” daquilo.

Cinema em Cena - Em algumas cenas, como naquela em que Preta serve uma refeição aos homens e Joaquim permite que ela sirva também um garoto indígena, a câmera está fixa no rosto da atriz, portanto a força da sua atuação está na voz. Em outras, como na cena do garimpo solitário e da cachoeira, não há texto, e a interpretação está nos gestos e no olhar. Como um ator lida com essa diversidade de situações?

Julio Machado – No cinema, como intérprete, não se tem muito controle disso. Muitas vezes, a gente não estava nem pensando em onde estava a câmera. O tipo de preparação proposto também nos levou a esse lugar. Havia uma intenção de dar ao filme um caráter documental, que a câmera ficaria solta, que ela entraria nas nossas conversas e presenças, nos lugares mais inesperados. Ela poderia surgir do chão, do alto, e isso tinha que ser natural. Então, não havia muito uma elaboração técnica ou estética. Era a plena liberdade de se colocar em ação e confiar que essa câmera pegar o que interessava para a cena e para a obra. Era uma confiança cega na obra.

Cinema em Cena – O crítico Pablo Villaça, diretor do Cinema em Cena, escreveu: “Vivendo seu primeiro papel de destaque no Cinema (e que num mundo justo o lançaria imediatamente ao estrelato), Júlio Machado compõe o protagonista como um homem menos racista do que seus contemporâneos, mas longe de ser perfeito (...)”. O Hollywood Reporter descreveu o seu “Joaquim” como “uma mistura de Che Guevara com Zorro, uma performance robusta e corajosa que projeta o orgulho ferido tanto quanto a sua humanidade íntegra”. Por esse tipo de reação, dá para perceber que o seu Tiradentes gera identificação na plateia, mesmo estrangeira. A que você atribui isso?

Julio Machado - Antes de Berlim, ficamos com essa dúvida: precisa ser brasileiro para se identificar com o Tiradentes? E lá nós fomos percebendo que não. Percebemos que o filme, independente da figura do Joaquim, o filme tem a sua personalidade, por ser um “horse movie” (risos), por ser despojado, com essa câmera entrando pelos espaços, ao mesmo tempo em que é um filme de época. Eu acho que tudo isso é fundamental. Fiz o que procuro fazer em todos os meus trabalhos, que é estar ali de forma íntegra. À medida que o filme avança, vamos trabalhando cada vez mais com as metáforas. Como ator, a gente quer oferecer o trabalho mais íntegro possível e isso se torna maior quando a produção, a direção, a direção de arte sabem aproveitar certos rituais, certas instâncias, certos improvisos, e descobrir algumas coisas até na montagem. Quanto mais preparação, mais condições de deixar fluir uma espontaneidade integrada com a proposta. Como o Marcelo é um artista muito especial, ele soube conduzir tudo de um jeito muito acertado. Ele sabia o que isso ia gerar. Por incrível que pareça, a gente vê por aí produções que atrapalham a própria obra, por falta de compreensão existencial e artística. Quando você quer fazer só mais um trabalho, para se manter, é difícil extrair algo de verdadeiro humano.

Cinema em Cena – O protesto que a equipe fez, em Berlim, contra o atual governo no Brasil, traz algum temor em relação ao filme e à sua carreira?

Julio Machado - Nenhum temor! Estar vivo não permite ensaio. As coisas vão chegando e, se isso (um boicote ao filme) acontecer vai ser mais uma oportunidade para se revelar a mesquinharia dessa reação reacionária da nossa sociedade bipolar, que não se conhece. Que se enxerga no americano e no europeu e não se conhece, nunca leu um livro de história e fica tentando fazer discurso político sem conhecer nada. É uma distorção completa. É uma situação que a gente vê no filme como gênese e segue aí. Não tenho temor algum. Eu quero mais é que essas pessoas se revelem, que elas se manifestem, mas não escondidas atrás de um computador. “Eu sou um tirano e eu me identifico com atitudes de censura e boicote”. A gente precisa superar isso. É desconfortável olhar um filme do século 18 e perceber que a tragédia de Tiradentes não é seu enforcamento, é ver que aquela situação persiste. Se a gente quiser evoluir, a gente tem que se olhar o espelho. A arte é uma forma de se olhar no espelho. O mais forte é o povo, pelo voto popular. Por enquanto, ainda temos uma parte importante do o povo que é alienada, mas quero crer que o povo está se desalienando.

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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