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ENTREVISTA Preta: a mola propulsora por trás do ativismo Brasil em Cena

Isabél Zuaa quase não se parece a personagem Preta, que interpreta em “Joaquim”, longa metragem que estreia nesta semana no Brasil. Com os cabelos muito curtos – ou raspados – Preta surge no início e no final do filme para ser uma espécie de detonador da consciência política do personagem que entrou para a história como Tiradentes. Na semana da pré-estreia do filme, Isabél surge com longas tranças afro. “Fiquei muitos anos quase sem cabelo, e isso me deixa muito exposta. Quis me resguardar um pouco, agora”, diz a portuguesa de 29 anos.

Atriz, cantora, dançarina e performer nascida na periferia de Lisboa, Isabél é filha de pais africanos. A mãe nasceu em Angola. O pai, na Guiné Bissau. Conheceram-se em Portugal e a filha, em 2010, mudou-se para o Brasil. Temendo pelo rendimento escolar dos filhos, o pai preferia que eles não aprendessem o dialeto crioulo pelo qual se comunica com os parentes, ainda na África. “Mas nós ouvíamos as músicas e, principalmente, as fitas cassete com as quais ele trocava notícias com meus tios e tias, então aprendemos mesmo assim”, explica Isabél, evidenciando que foi justamente por falar um dialeto africano que se colocou entre as atrizes selecionadas para o papel.

“Minha história é um verdadeiro triângulo amoroso entre África, Europa e Brasil”, brinca Isabél, contando que se mudou para o Rio, em 2010, para estudar Artes Cênicas, na UniRio. Em uma cena do filme, Isabél canta e dança uma música, em dialeto africano, que ela aprendeu com os tios, cantores na Guiné Bissau. A letra fala sobre alguém que sai de seu lugar de origem, quer voltar e não consegue, e por isso gostaria de ter asas para voar. “A premissa para esse papel era uma atriz negra, portuguesa, que falasse outra língua além de Português. Agora, felizmente já há mais atrizes nesse perfil, mas era algo muito específico e ainda somos poucas”, lembra a atriz, durante a entrevista exclusiva que concedeu ao Cinema em Cena.

Cinema em Cena - Você é atriz, performer, cantora e dançarina. Como essa experiência ampla em formas de atuação contribuiu para a composição da personagem Preta?
Isabél Zuaa – O filme tem um teor documental muito forte, abordando esses temas que lidam com a exploração, esses corpos diferentes, esses rostos sofridos, vincados e desconhecidos, de pessoas de verdade, não aqueles personagens históricos típicos. Essa coisa do corpo era muito orgânica, então a composição não foi muito pensada. Na preparação, tive a oportunidade de ir a terreiros de candomblé, em Diamantina, estive em ex-quilombos, em comunidades quilombolas resistentes. Usei isso tudo como estratégias de sobrevivência da Preta, de resistência, criando a sua revolução paralela a essa história maravilhosa que o Marcelo trouxe, com tanta humanidade.

Cinema em Cena - Seus pais são africanos, você nasceu em Portugal e mora no Brasil. Como você enxerga a presença desses três continentes na composição da sua personagem?

Isabél Zuaa – Preta foi uma aula de humildade. Eu tenho a possibilidade de circular, eu vim para o Brasil por escolha, ela não. E as minhas primas, minha irmã foram todas para o norte da Europa, para tentar uma vida melhor, eu decidi vir para o Brasil, e para fazer teatro. Sou a outsider da família. (risos) Enquanto mulher livre, contemporânea, com todas as questões que eu vivo, eu não consigo entender uma pessoa ter a sua liberdade privada por causa da sua cor, para mim isso é muito cruel. Sinto racismos diferentes no Brasil e em Portugal: lá, eu não tenho problema em sair, entrar em uma farmácia, mas, aqui, se tiver segurança, ele vai me seguir. O fato de eu ter cabelo diferente chamava a atenção e eu não entendia por que. Quando cheguei ao Brasil, eu usava turbante e as pessoas perguntavam: “você é mãe de santo?” E eu nem sabia o que era isso. Amarrar um pano na cabeça é coisa que eu faço desde sempre, é natural, e usá-los aqui era visto como um ato de resistência. Para mim, era a necessidade de criar um não lugar desse triângulo amoroso na arte: cantar música africana, música brasileira, fado, fazer espetáculo sobre Carolina Maria de Jesus, pesquisar essas autoras negras contemporâneas (Nina Silva, por exemplo), Elza Soares, antes do boom da “Mulher do Fim do Mundo”, Nina Simone, que é uma referência não só minha, mas de liberdade, com tudo que ela sofreu por abraçar um ativismo que a estigmatizou como extremista, louca, e acabou doente, porque o preconceito mata.

Cinema em Cena - Preta/Zua se comunica muitas vezes em um dialeto africano, portanto incompreensível para a maioria das pessoas. Qual é a função disso, na narrativa?

Isabél Zuaa – Preta é uma mulher altiva, o tempo inteiro, mesmo em sua condição de escrava. Um dos momentos, uma cena de sexo, ela mostra essa altivez. Ele está fazendo sexo oral e, em crioulo, ela está literalmente zoando o cara, dizendo coisas como “Não tá funcionando, não tá legal...”. E isso é uma questão muito atual! A gente vê hoje, nesses blogs feministas, as mulheres escrevendo para os homens. “Olha, querido, tem que ouvir a mulher, se você está fazendo o que ela quer, entender os sinais. Se ela te puxa pra cima é porque não está rolando.” E ela incorpora isso, reafirmando a sua altivez. Tem outro momento em que ela fala em crioulo, quando está carregando um caldeirão, no qual ela diz que vai fugir, que é um elemento central da história. Essa foi uma estratégia do Marcelo: aquele idioma diferente faz com que o espectador também se sinta estrangeiro, porque não entende a língua. Então, a função é colocar o espectador dentro daquela época, experimentar o que as pessoas ali viviam.

Cinema em Cena - A questão da representatividade racial tem sido objeto de debate no cinema. Como você analisa essa questão, de um ponto de vista geral, e especificamente no caso do Brasil?

Isabél Zuaa - A visibilidade que o filme traz é importantíssima. Essas mulheres que hoje são referência para mim eram as mulheres que tinham visibilidade quando eu era criança, elas chegaram até mim. Você cria uma esperança e move uma força de que é possível. Agora, as meninas do meu bairro, na periferia de Lisboa, querem ser atrizes e eu falo: tem que estudar, tem que se envolver, tem que pesquisar. É maravilhoso ver que essas crianças, como eu já fui, enxergam outras possibilidades. Olho para elas e sou otimista, acho que muita coisa melhorou , mas ainda há coisas que se mantêm, mas estão sendo diluídas, trabalhadas e questionadas. Eu tenho muito cuidado com essa forma de questionar porque é importante não curar a opressão oprimindo o outro. A gente tem que lutar contra o preconceito, sem ser preconceituoso.

Cinema em Cena – A mulher negra segue sendo a maior vítima na nossa sociedade?

Isabél Zuaa - No cinema, como na vida, a mulher negra é costumeiramente vista como o final da cadeia alimentar. Ela é vista para servir, ela é a barraqueira, mas por quê? Porque ela usa essas estratégias de resistência, como a Preta faz no filme: ela tem uma força física e uma força psicológica. Ela mata um homem e, diante de tudo que ela sofreu, o espectador se identifica com o gesto porque percebe que aquela foi uma reação, uma legítima defesa. O que a Preta faz com sua própria vida, no filme, é o que a gente chama hoje de empoderamento: é a reação de uma mulher negra em uma sociedade hostil a ela. E essa sociedade hostil continua, para mim. No entanto, eu tenho outros mecanismos para me impor, não precisei matar e fugir, mas eu tenho pessoas na família que precisaram fugir. Meus pais são africanos e passaram por duas guerras, em dois países africanos colonizados por Portugal. As consequências se mantêm: sabe lá o que alguém tirar você da sua terra e te dizer “você não pertence mais a esse lugar”? Isso é de uma violência extrema. Quem são essas pessoas que se acham mais do que os outros? Era uma convenção social, ter escravos era uma coisa normal, mas por que o negro tinha que ser inferiorizado em relação ao branco? Porque somos diferentes? O que nos torna diferentes? Só a cor? Que percepção distorcida é essa, de que a cor nos torna melhores ou piores? Durante as filmagens, no interior, algumas mulheres locais me chamavam de “morena”, como se a palavra negro fosse um xingamento. E eu dizia: pode me chamar de Preta, pode me chamar de Negra e elas “não, porque é feio, a minha avó era negra, mas não se fala assim”. Foi um ensinamento, e ao mesmo tempo, uma oportunidade de ensinar àquelas pessoas o que é ser negro e não ter constrangimento nenhum, de não se sentir melhor nem pior que ninguém. Somos humanos e somos diferentes uns dos outros, mas não é só a cor que nos diferencia.

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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