O nobre deputado diz ao jovem estudante: “só respeito o movimento de vocês porque ele é apartidário”. No entanto, nega-se a apoiar, naquele momento, a criação de uma CPI que investigaria desvios na merenda de escolas públicas do estado de São Paulo. Seu motivo: assume que votaria em bloco com os outros membros do partido dele. “Ou seja, eu posso, vocês não podem, deixando evidente um discurso cínico, que expressa a organização como algo ruim, seja ela política, partidária, de movimentos.”
Desta forma, a diretora do documentário #Resistência, Eliza Capai, analisa um dos trechos do média-metragem realizado em 2016. Ela estava fazendo uma série para o canal de TV Futura sobre democracia, ancorado em temas que, segundo ela, estão mais nas palavras do que na prática. “Então, eu estava em busca de personagens”, conta Eliza.
Quando ocorreu a ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), ela entrou em contato com o grupo de estudantes responsável pelo movimento e obteve autorização deles para filmar aquele momento. “Fiquei fascinada, porque a Educação era um desses temas que eu estava pesquisando, uma Educação de qualidade universal, que não existe na prática, e eu propus falar dessas temáticas através das ocupações que começaram a pipocar.”
Essa “negociação” da documentarista com o grupo de estudantes é mostrada no filme. De fato, Eliza entrou em contato com uma das líderes do grupo por uma rede social e, sem muita demora, logo estava dentro do prédio da assembleia. Uma das estudantes diz que, à exceção de uma repórter, do canal Globonews, também retratada no documentário, os demais veículos de comunicação simplesmente não fizeram nenhum movimento de aproximação.
“Quando nós entramos, ficamos em choque, não entendemos nada do que estava acontecendo e passamos a tentar compreender aquele movimento. Não fui falar com os jornalistas que não entraram, então não posso emitir juízos, mas, normalmente, a mídia tradicional já sai pautada. Ela vai captar imagens para legitimar uma ideia preconcebida”, avalia Eliza, que começou a receber notícias, junto com aqueles estudantes, de ocupações em outros edifícios públicos.
Era o início do governo interino de Michel Temer. Depois da ocupação da Alesp, começa uma nova onda de ocupações, como da Assembleia de Alagoas e do prédio da Funarte, no Rio de Janeiro, cada uma com uma bandeira específica. Em grande medida, as ocupações se fundamentavam em pautas claras. No caso dos estudantes da Alesp, a CPI da Merenda, no caso dos artistas, começou com protestos contra a extinção do Ministério da Cultura, e continuou pedindo a saída de Temer.
Ao mesmo tempo, era possível perceber que as ocupações discutiam utopias de mundo: qual a educação pública ideal, como é a cultura ideal, universal, que dá direito às pessoas produzirem. E, no meio dessa utopia, vem a realidade. “No caso do MinC, no Rio, isso fica muito claro, quando a discussão vai por esse lado, mas ao mesmo tempo acontece um episódio no qual um cara, também manifestante, entra na barraca de algumas das meninas. Como essas duas coisas podem conviver? E aí vem a necessidade de organização interna, para repensar e para modificar as práticas”, entusiasma-se a diretora.
Ocupação não é invasão
Em um dos trechos do documentário, um policial se refere ao fato de o grupo ter “invadido” o prédio e uma manifestante contesta o termo, reforçando que o grupo havia “ocupado”, ao que o policial diz que “é a mesma coisa”. Eliza embarca na discussão. “Eu reflito muito sobre isso. Em outra passagem, quando um grupo entra no Congresso e quebra um vidro, e esse grupo estava armado, eu mesma disse que eles haviam invadido, e me perguntei por que não disse ‘ocupado’. E a conclusão a que eu cheguei é que uma ocupação é resultado de um grupo de pessoas lutando pelo direito de um coletivo.” Direitos, que na maioria das vezes, são legais, como a educação pública. “E, em geral, a palavra invasão é usada quando os detentores do poder se veem ameaçados. É o que acontece com o MST, por exemplo.”
“Veja o movimento de moradia como é tratado no Brasil: pessoas vistas como vagabundos que invadem prédios. Todos os grupos que iniciam movimentos de se organizarem de fato e demonstram capacidade de mudanças sociais profundas são atacados”, diz Eliza. Em depoimento para a cineasta, um dos estudantes que ocupam a assembleia contesta a afirmação de que ter caráter político poderia ser um problema para o movimento.
“Esse conceito, inclusive, foi muito repetido pelo governador Geraldo Alckmin na ocasião. E, se formos olhar o partido do Alckmin, é cheio de ex-dirigentes do movimento estudantil. José Serra foi presidente da UNE, Aloysio Nunes Ferreira foi presidente de Centro Acadêmico. As nossas grandes lideranças vêm, em grande parte, desses movimentos, porque são pessoas que se interessam pelas questões sociais, que têm utopia, o desejo de modificar.”
O turbante, antes da polêmica
Instalados na Assembleia Legislativa de São Paulo, meninas e meninos, brancos e negros, em dado momento desfilam com turbantes na cabeça. A cena chama a atenção depois que o uso desse símbolo da cultura afro criou polêmica há alguns meses, especialmente nas redes sociais. “Essas cenas foram gravadas antes da polêmica do turbante, que é uma discussão que encarna muitas outras questões, a partir da apropriação cultural, tendo o turbante como símbolo disso”, aponta Eliza, esclarecendo que, naquele momento, essa discussão não estava em pauta, entre aqueles estudantes. No entanto, a diretora sente que a questão do não reconhecimento de alguns privilégios de grupos (homens brancos, por exemplo) é algo muito discutido no movimento estudantil.
“Eu, como mulher branca, entendi que há um lugar dos privilégios no qual eu não reconheço como a minha vida é mais fácil do que a de uma mulher negra, por exemplo. Então, tenho que reconhecer que ele existe e, se tem alguém me pedindo alguma coisa, porque eu vou fazer essa pirraça e mostrar que eu posso? Ali, na assembleia, eu acho que essa discussão está presente o tempo inteiro. Na escola pública, eles vivem essa questão na rotina.”
#Resistência: sessão em Foz do Iguaçu
Documentário “terapêutico”
O leitor do Cinema em Cena dificilmente verá #Resistência em uma sala do circuito comercial de cinema. “Esse é um documentário terapêutico, como resposta à misoginia e a todas as formas de autoritarismo que estavam dominando aquele período. Ele não foi feito pensando em uma circulação formal e, inclusive por questionar a grande mídia, é difícil divulgá-lo nesses canais”, admite Eliza.
“Como nós estamos tratando de ocupações, nossa intenção foi distribuir o filme com base no que nós vimos ser pedido lá dentro, que era uma cultura descentralizada e gratuita. Fizemos um chamado pela internet, no dia 12 de maio. Chamamos as pessoas para fazer o pré-lançamento do filme na semana que completava um ano do afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Na primeira semana, foram 70 exibições em várias cidades do Brasil, inclusive sertão, litoral, e até fora do País (Canadá, EUA, Portugal)”, comenta Eliza.
O filme está disponível em uma plataforma. Quem quiser organizar uma sessão, basta fazer um cadastro, muito simples e, de preferência, organizar uma sessão com um debate depois. “Participei de algumas sessões e gostei muito quando o filme deixou de ser o tema das discussões e elas passaram a girar em torno dos temas que o filme aborda”, festeja a diretora.
Para acessar a plataforma e fazer o cadastro, basta entrar na página do documentário #Resistência no Facebook.