"Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios..."
O poema "Ah! Os relógios", de Mário Quintana, é recitado pelo protagonista em uma das cenas do filme Gabriel e a Montanha, tornando a fronteira entre verdade e fantasia algo tênue, já que o segundo longa metragem do diretor Fellipe Barbosa também se situa nessa linha fina entre ficção e documentário, contando a história de um jovem que, desde o começo, o espectador sabe que vai morrer. O filme fez sua estreia na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo na noite de segunda-feira, 23 de outubro, com a presença do diretor, dos atores João Pedro Zappa (Gabriel) e Caroline Abras (Cris) e de parte da equipe de produção.
O filme reconstitui parte da viagem pela África empreendida por Gabriel Buchmann, doutorando em Economia, amigo do próprio diretor, que morreu em 2009 no Maláui, depois de dispensar o guia que o conduziria na subida do Monte Mulanje. "É um cinema verdade, como diria Jean Rouch, embora eu não tenha buscado essa aproximação de forma consciente", disse Fellipe Barbosa no debate após a sessão. Um dos roteiristas do filme, ao lado de Kirill Mikhanovsky e Lucas Paraizo, o diretor contou que escreveu várias versões do roteiro até iniciar o período de setenta dias de filmagens na África.
Mesmo já nos locais de filmagem, Fellipe continuou mantendo a flexibilidade na tarefa de retratar a última viagem de Gabriel. O compromisso com a reprodução desse período levou o realizador a modificar diálogos e tomadas, guiado pelos personagens africanos reais que conviveram com Gabriel e desempenham seus próprios papéis no filme. "Muitas vezes, eu abri mão do que tinha escrito para mergulhar na viagem do personagem, deixando que aquelas pessoas corrigissem e, de certa forma, conduzissem a história", comentou Fellipe após a estreia do filme em São Paulo.
A opção por começar pela morte do protagonista foi, segundo o diretor, uma questão polêmica durante a montagem de Gabriel e a Montanha. "Nós poderíamos ter invertido e colocado a sequência inicial no final do filme, mas eu de fato nunca cogitei isso. Sempre achei que essa ordem, com a morte antes e a vida dele depois, era o que transformava aquele relato documental em uma obra de ficção", acrescentou o diretor. "É um filme que confronta a ideia de destino, que se fixa na possibilidade de dobrar o tempo, conjugando passado e presente, daí a referência ao relógio", concluiu o diretor.
Gabriel e a Montanha estreia no circuito comercial brasileiro em 2 de novembro. Leia aqui a crítica de Pablo Villaça.