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87 - Por que Cancelei a Netflix e Acredito que Você Também Deveria - Parte II Conversa de Cinéfilo

POR QUE CANCELEI A NETFLIX E ACREDITO QUE VOCÊ TAMBËM DEVERIA FAZÊ-LO – PARTE II

Na primeira parte deste artigo, deixei claro que o lançamento da série O Mecanismo representou apenas a gota d’água em um processo que já me levava há muito tempo a considerar o cancelamento da Netflix. Estas razões abrangem o mal que a corporação vem fazendo ao Cinema tanto como experiência individual quanto comunal – e, não por acaso, o Festival de Cannes, o mais prestigiado evento internacional da Sétima Arte, baniu os filmes da plataforma.

Os problemas começam no próprio catálogo do serviço: embora se venda como uma forma de democratizar o Cinema, facilitando o consumo por espectadores que normalmente não têm tempo ou dinheiro para ir a uma sala de exibição ou comprar DVDs, a Netflix na realidade vem estreitando as opções disponíveis para seus clientes, que, pela comodidade, se conformam em assistir produções que são negociadas em pacotes com o propósito principal de despejar títulos e mais títulos que possam manter os assinantes presos ao site. Aliás, a Netflix usa a “sobrecarga de escolhas” (termo cunhado por Alvin Toffler) justamente para manter a ilusão de oferecer um número colossal de opções quando, de fato, estas são incrivelmente reduzidas. Isto traz, obviamente, sérias consequências de um ponto de vista cultural – como explicou o professor de estudos cinematográficos Stephen Prince, da Virginia Tech, em artigo da Newsweek: “A conveniência predispõe os espectadores ao Cinema mainstream e torna os filmes do passado ou de outras culturas menos visíveis”.

E o pior é que, com a dominância da Netflix (que é basicamente um monopólio hoje no Brasil), qualquer obra que não conste de seu catálogo está fadada ao esquecimento. Já perdi a conta, por exemplo, de quantas vezes recomendei filmes para leitores apenas para ouvir a inevitável pergunta “Tem na Netflix?”. Isto é um impedimento real para que espectadores casuais se tornem apaixonados pela arte, já que ninguém nasce cinéfilo, tornando-se um à medida que surge a curiosidade de ir além do que as distribuidoras lançam nas salas toda quinta-feira. Para ilustrar, lembro de meu caminho na cinefilia, que começou com as Sessões da Tarde, Supercine e outros espaços para filmes na TV, expandiu-se com as idas às salas de exibição e culminou nas prateleiras de clássicos nas locadoras de vídeo. Infelizmente, a Netflix se equivale, neste aspecto, a uma pequena videolocadora de bairro, que comprava apenas os lançamentos por não acreditar que filmes “antigos” atrairiam os clientes. E se com a Internet surgiu a oportunidade de assistir a qualquer obra lançada em toda a História do Cinema com um clique, até mesmo os torrents se tornaram quase esquecidos por exigirem algum esforço.

(Não, não estou advogando em prol da pirataria, mas apenas apontando como a Netflix vem criando espectadores preguiçosos.)

Pois vocês sabem quantos filmes brasileiros existem na Netflix Brasil? 59.

Quantos documentários? 679 – um número que parece satisfatório até descobrirmos que, destes, nada menos do que 624 foram produzidos de 2010 para cá e incluem uma infinidade de bobagens produzidas aparentemente por 10 reais e jamais exibidas em uma sala de cinema, abordando temas como a existência do Pé-Grande (Discovering Bigfoot), a possibilidade de que a Gênese tenha realmente acontecido como descrito na Bíblia (Is Genesis History?) ou simplesmente visitas guiadas a prédios famosos (Secrets of Westminster). Além, claro, das séries lançadas em canais de tevê insignificantes por não terem nada de interessante a oferecer, como Die Trying, que mostra “aventureiros” entrando em crateras vulcânicas ou buscando “superursos”.

Aliás, sabem quantos filmes anteriores a 1985 a Netflix Brasil tem em seu catálogo? 69. Sim, dos aproximadamente 4.000 títulos oferecidos pela filial brasileira (um número ridículo em si mesmo, bastando dizer que uma das últimas lojas da BlockBuster - que funciona no Alaska - oferece nada menos do que dez mil títulos), cerca de 3.930 foram produzidos de 85 para cá. Para deixar mais claro ainda: mais de 98% de todo o catálogo da Netflix Brasil foram produzidos a partir de 1985. E não, a Netflix dos EUA não é muito melhor, oferecendo apenas 5.658 obras.

Em matéria publicada no New York Times, o (excepcional) crítico Matt Zoller Seitz é citado afirmando: “Eu me preocupo que a dominância cultural da Netflix, que não se importa com filmes mais velhos, esteja destruindo a cinefilia como a conhecemos”. Esta falta de preocupação com o Cinema como Arte é manifestada também pelo recurso de “saltar os créditos iniciais” implementado há algum tempo pelo sistema: se a ideia faz sentido para séries, já que durante o binge-watching ninguém quer assistir aos mesmos créditos uma dúzia de vezes, para o Cinema é absurda. Além de ignorar como os créditos frequentemente introduzem a atmosfera do filme, há rimas visuais que são destruídas (em artigo publicado no The Guardian, é revelado que todo o voo da pena branca no início de Forrest Gump é pulado), informações importantes que são descartadas e, claro, a própria e rica arte envolvida na criação destes créditos é ignorada. Para tornar tudo pior, a única “curadoria” (na falta de uma palavra melhor) existente na plataforma é completamente automatizada – e grande parte dos assinantes aceita a primeira recomendação oferecida ao entrar no site. É cômodo? Sem dúvida. No entanto, também traz efeitos deletérios: em um estudo publicado por dois executivos da Netflix em 2016, já é possível notar a prioridade da empresa no título: “Algoritmos, Valores de Negócio e Inovação”. Nada sobre a qualidade artística do que é oferecido e que deveria ser, suponho com ingenuidade, o centro de um negócio devotado a distribuir conteúdo artístico.

Aliás, ao comentar o estudo para a revista Filmmaker, o produtor Dan Schoenbrun discute o empobrecimento cultural resultante deste tipo de abordagem e do fato de que, na prática, um algoritmo se tornou o “mais influente curador desta geração”. O problema com isso? “Este é um curador que não busca provocar ou desafiar ou educar ou expandir nossa compreensão sobre Arte. Não busca apresentar ao espectador trabalhos desafiadores. Não busca dar espaço às questões políticas e sociais de nosso tempo. Em vez disso, os únicos objetivos deste curador são comerciais: continuar alimentando os clientes com o que querem e, em troca, ajudar a Netflix a continuar a crescer e se fortalecer como negócio. (...) Tudo isso resultará num crescimento de nosso consumo e dos lucros da Netflix. E uma queda em nossa exposição a qualquer tipo de arte fora de nossa zona de conforto”.

Pois eu iria além e alteraria parte da passagem acima para “continuar alimentando os clientes com o que julgam querer”, já que nada de novo lhes é apresentado.

E não posso esquecer de mencionar que mesmos estes algoritmos são limitados, agrupando filmes completamente diferentes, por exemplo, apenas porque são protagonizados por intérpretes negros – o que representou uma surpresa para a cineasta Gina Prince-Bythewood, que viu seu drama Nos Bastidores da Fama ser recomendado ao lado da comédia romântica Meus Cinco Favoritos. Outro exemplo apontado pela Paste é o fato de o triste e socialmente relevante Fruitvale Station, que aborda a violência policial contra negros, ser listado como similar à sitcom oitentista A Different World.

Mas a Netflix está também desempenhando um papel triste não só ao apagar os clássicos, mas ao dificultar imensamente a experiência do Cinema nas salas de exibição, em telas grandes. Aliás, igualmente grave: a empresa está dificultando as carreiras de pequenas produções em festivais internacionais, onde teriam a chance de serem descobertos por público e crítica. Em entrevista à Variety, Robert Olla, diretor executivo de um fundo de coprodução europeia, revela que a corporação vem abordando realizadores ligados a coproduções envolvendo mais de um país e oferecendo para comprar os filmes – com a condição de que, com exceção do país responsável pela maior parte do dinheiro, todos os outros territórios serão exclusividade da Netflix. Ah, sim: e o projeto está proibido de ser exibido em mais de cinco festivais ao redor do mundo. “Com isso, o filme vai parar no poço sem fundo da Netflix, com visibilidade zero”, diz Olla. (Um outro problema que, diga-se de passagem, discuti na primeira parte.)

Este desrespeito pela experiência pública do Cinema também já foi manifestado pela Netflix ao insistir em desafiar regulamentações internacionais ao ignorar o período determinado por lei entre a exibição nos cinemas e a disponibilização via streaming, o que contribuiu para seu banimento do Festival de Cannes e a frustração crescente entre grandes cineastas: em várias ocasiões, o diretor Christopher Nolan expressou sua antipatia à intransigência da Netflix, dizendo ao IndieWire que “...a Netflix tem essa aversão bizarra a apoiar a exibição nos cinemas. (...) Já a Amazon está feliz em não repetir este erro, concedendo uma janela de 90 dias entre cinema e streaming. É um modelo perfeitamente usável. É ótimo”. Enquanto isso, Steven Spielberg declarou recentemente que os títulos lançados diretamente na Netflix (ou exibidos rapidamente apenas para se tornarem elegíveis) não devem concorrer ao Oscar: “Certamente que, sendo um bom trabalho, merece um Emmy. Mas não um Oscar. (...) E não acho que filmes que aparecem em uns dois cinemas por menos de uma semana deveriam se classificar para o Oscar”.

Para concluir, é fundamental notar que há uma razão para a Netflix estar investindo tão pesadamente em produções originais que, como também apontado anteriormente, colocam a duração acima da ambição artística: como boa parte de seu catálogo é constituído de obras licenciadas dos grandes estúdios, a empresa está, na prática, nas mãos destes. A Disney, por exemplo, está preparando sua própria plataforma de streaming e, com isso, os dias de seus filmes e séries na Netflix estão contados.

E aqui vale lembrar que a Disney é dona também da Pixar, da Marvel, da franquia Star Wars e, em breve, da Fox.

Oh-oh.

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Minha intenção inicial era explicar, em um único artigo, quais foram os vários motivos que me levaram a cancelar a Netflix, já que muitos atribuíram a decisão apenas ao lançamento da série O Mecanismo. No entanto, assim que comecei a escrevê-lo, percebi que eram em número bem maior do que eu havia me dado conta. Assim, depois de publicar a primeira parte, julguei que abordaria o restante na segunda.

Errei novamente. Aqui, consegui concluir apenas minhas razões como amante do Cinema. Há, ainda, as questões éticas da empresa e que envolvem práticas sociais e comerciais questionáveis e, claro, outras ainda mais graves relacionadas aos escândalos da indústria que começaram a vir a público em outubro do ano passado.

E que abordarei na terceira – e última – parte, que publicarei no início da próxima semana.

Um grande abraço e bons filmes!

31 de Março de 2018

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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