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Todos os Paulos do Mundo Brasil em Cena

Eles surgem de costas, andando, depois correndo, em passos a princípio calmos, contemplativos, até se tornarem arriscados, agressivos, desesperados. Os Paulos se sucedem na tela, espalhando-se pelo mundo, sob a voz de Paulo (José), recitando os versículos do Gênesis que contam a Torre de Babel. “Desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro. Assim, o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra.”

A intenção dos diretores Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro foi semelhante: na abertura do documentário “Todos os Paulos do Mundo”, eles espalham os personagens do ator Paulo José, 81 anos, deixando-os libertos para contar a vida e a carreira do artista cuja obra, em muitas formas, reconta a história do cinema brasileiro e a história recente do Brasil.

Cartaz de "Todos os Paulos do Mundo", que estreia nesse dia 10 de maio

“Desde o início, a gente sabia que estava fazendo um filme sobre o Paulo, sobre o cinema brasileiro e sobre a história recente do País”, conta Gustavo. Gaúcho de Lavras do Sul, onde nasceu em 1937, Paulo José está nas telas desde 1965, quando protagonizou seu primeiro longa-metragem, O padre e a moça, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, e fez quase cinquenta filmes. “Não tem um período da história do cinema brasileiro em que o Paulo não esteja presente”, completa Gustavo.

Rodrigo acrescenta. “Nos primeiros dois anos da carreira do Paulo no cinema, ele faz dez filmes. Ele é um dos poucos atores que participaram de todos os movimentos e que estava também na dianteira do pensamento sobre o que estava acontecendo no Brasil”, diz Rodrigo, lembrando uma frase do filme, dita pelo ator, diretor e roteirista. “Em certo momento, ele diz: ‘a vocação da nossa geração era mudar o mundo’, mas aí veio o AI-5.”

Paulo José em "O Padre e a Moça", seu primeiro longa-metragem

As referências ao Ato Institucional número 5, de 1968, são muitas no documentário, refletindo a visão do artista sobre o período de maior recrudescimento da ditadura. “Ele já foi perseguido no golpe, precisou ficar escondido no apartamento do Walmor Chagas e da Cacilda Becker, mas mais do que o 1º de abril de 1964, o grande lance para ele foi o 13 de dezembro de 1968”, aponta Gustavo. “Ele se engajou completamente no universo da cultura brasileira, e isso o expôs a sofrer também as tragédias desse universo”, acrescenta Rodrigo.

Da mesma forma, anos depois, já no final da década de 1980, Paulo José atravessa junto com o cinema outra crise, com a canetada do então presidente Fernando Collor e o fim da Embrafilme. “Não se cola a existência a uma narrativa tão frágil quanto a do cinema brasileiro sem sofrer com isso também”, reflete Rodrigo.

Cartas a um jovem ator

O documentário “Todos os Paulos do Mundo” tem título e cartaz remetendo a “Todas as Mulheres do Mundo”, filme de 1966 de Domingos de Oliveira, o segundo da carreira de Paulo José. Imagens dos filmes, séries e novelas feitos pelo ator surgem emolduradas por textos em primeira pessoa, ditos por ele mesmo ou por outros atores que, de alguma forma, se relacionaram com ele ao longo da vida. Estão lá as vozes de Fernanda Montenegro, Milton Gonçalves, Joana Fomm, Selton Mello, Matheus Nachtergaele e outros.

“Os textos são coisas que ele disse ao longo da vida, em entrevistas. Ele não escreveu para o filme, mas nós percebemos que eles geravam uma narrativa com cara de roteiro. Mais que isso: se alguém digitar e publicar, aquilo é um livro”, avalia Rodrigo.

Entre as frases coletadas e reunidas, muitas conceitos e teorias sobre o ofício de ator. Rodrigo lembra que a reação dos atores, ao sair da sessão, é sempre muito curiosa. “O Mateus Nachtergaele, na estreia, no Rio, saiu e falou: ‘Pronto, tenho que começar tudo de novo! ’.  Mas, ao mesmo tempo, a gente joga um pouco com as contradições”, revela Rodrigo. “Jogamos bastante com isso no filme, coisas que ele diz, que parecem ‘conselhos do Paulo José para um jovem ator’ e que, assim que ele diz, a gente coloca imagens que contradizem aquilo, que ampliam a ideia do que ele está falando. ”

 

Gustavo Ribeiro e Rodrigo de Oliveira, diretores de "Todos os Paulo do Mundo"

Rodrigo acrescenta outro elemento à análise. Para ele, há um pouco de ensinamento, mas também algo que o Parkinson trouxe para ele, de provocação mesmo, de reconhecer o não saber. “No fim de tudo, para alguém que tem 80 anos e que fez filmes por 50 deles, não saber como se colocar diante de um personagem novo talvez seja mais importante do que chegar sabendo tudo. ”

Paulo José foi diagnosticado com Mal de Parkinson há mais de vinte anos. “A doença serviu como um trampolim para ele, que passou a se cuidar muito mais e a fazer as coisas que ele realmente queria”, avalia Gustavo. “Depois que ele descobriu a doença, ele produziu muito mais, no teatro, no cinema e na televisão. Ele nunca parou. A doença serviu como um estímulo: ele poderia ter se recolhido e sumido, mas ele fez justamente o contrário. Ele se expôs muito e expôs a doença também. ”

Gustavo conta que Paulo José foi fundamental na produção do filme, especialmente na fase de montagem. “Terminávamos de mostrar cortes, ele vinha com listas e listas de coisas que ele achava que a gente podia mudar”. Rodrigo concorda. “Ele discutia com a gente, ajudou a melhor o filme, a melhorar a gente.

“Eu me sinto filmado”

Sessenta e quatro anos de carreira, mais de 50 filmes, inúmeras participações na TV e no teatro, Paulo José diz, em determinado trecho do documentário, uma frase aparentemente paradoxal. “Eu me sinto filmado”, balbucia o ator. Por causa do Parkinson e da fragilidade da voz, os diretores sabiam desde o princípio que não iriam entrevistá-lo no presente. “Até porque ele já tinha dito tudo ao longo dos anos”, lembra Rodrigo.

“Naquele momento, a gente estava se preparando para filmar outra coisa. E ele começou a falar. Estava lembrando muito de O Padre e a Moça. Nós nos entreolhamos e começamos a filmar, mas ele não percebeu. Quando Paulo José diz ‘eu me sinto sendo filmado’ é como se ele dissesse ‘eu me sinto vivo’ e eu espero que ele continue se sentindo filmado por muito tempo ainda”, projeta Rodrigo.

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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