Segundo longa-metragem de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, Tinta Bruta fez sua estreia no Festival de Berlim deste ano, onde levou o Teddy Awards, e passou por mais de 45 festivais, sendo foi o maior vencedor no último Festival de Cinema do Rio deste ano.
O filme conta a história de Pedro (Shico Menegat), um jovem de Porto Alegre que tenta sobreviver em meio a um processo criminal, à partida de irmã e única amiga e aos olhares que recebe sempre que sai na rua. Sob o codinome Garoto Neon, Pedro se apresenta no escuro do seu quarto para milhares de anônimos ao redor do mundo, pela internet. Com o corpo coberto de tinta, ele realiza performances eróticas na frente da webcam. Ao descobrir que outro rapaz (Bruno Fernandes), de sua cidade, está copiando sua técnica, Pedro decide ir atrás do concorrente.
Os diretores e roteiristas falaram com exclusividade ao Cinema em Cena:
Qual foi o ponto de partida para a criação de “Tinta Bruta”?
Marcio Reolon: Nós quisemos falar sobre e partidas e abandonos. Estamos fora de Porto Alegre há mais de dez anos, refletindo um movimento comum da nossa geração, com muitas pessoas saindo e a cidade ficando cada vez menos interessante para os jovens de lá. Paramos para pensar nisso e percebemos que pelo menos dez amigos nossos mais próximos já não moravam lá. Queríamos trabalhar o sentimento de quem fica na cidade, para as quais o contato com quem sai é online, diferente do contato presencial. Percebemos que, nesse movimento, cada um passou a criar uma persona online na rede. Pedro é, essencialmente, uma persona (Garoto Neon) que é tudo o que ele queria ser.
Felipe Matzembacher: Durante esse processo, fomos atravessados por essa ruptura democrática no País. Começamos a sentir que as populações mais vulneráveis são as primeiras a sofrer e jogamos essa raiva no filme. Pedro é reativo porque reflete essa raiva, esse medo.
Em dado momento, o personagem Pedro diz a frase “Minha mãe morreu, meu pai sumiu”: existe um subtexto de machismo latente no filme? Para vocês, a homofobia e o machismo se confundem?
Marcio Reolon: Há relações entre eles, sem dúvida. A homofobia é um dos resultados de um comportamento machista e isso é um problema social. No filme, trabalhamos alguns marcadores sociais e o Pedro é a figura que concentra a maior parte desses marcadores: gay, de classe baixa, sem pai, nem mãe.
O roteiro foi rigidamente seguido ou houve um processo de criação conjunta também com os atores?
Marcio Reolon: O roteiro foi um trabalho a quatro mãos e o filme segue bastante esse roteiro. Mas, como o processo de ensaio durou sete meses com os dois atores, fomos naturalmente criando espaço para conhecer melhor esses personagens e os próprios atores, discutindo soluções, incluindo improvisos que, ao final, ajudaram a modelar o roteiro.
Felipe Matzembacher: Esse movimento revela um interesse nosso, que é o de aproximar o processo cinematográfico do processo teatral, abrindo a criação mais ao acaso, como acontece no teatro.
A Porto Alegre retratada no filme é uma cidade assustadora, com sombras e silhuetas na penumbra, criando uma atmosfera aterrorizante. Por que vocês optaram por essa linha?
Marcio Reolon: Esse medo é o reflexo da cultura gaúcha na qual nós fomos criados. É uma cultura que privilegia certos personagens, modelos e narrativas e exclui outras. É, em sua essência, uma cultura racista, homofóbica, machista e quem não se enquadra nesse modelo tem, naturalmente, uma relação de mal-estar com essa cultura.
Felipe Matzembacher: Nós identificamos um momento da história de Porto Alegre, nos anos 1980, em que parecia existir uma Porto Alegre mais progressista, que acolhia as diferenças, e isso parece ter se perdido. O Pedro de Tinta Bruta se ressente desse ciclo, e isso é evidenciado pela maneira que ele se relaciona (ou não se relaciona) com as pessoas na rua, mantendo-se sempre isolado, justamente para não se sentir ou ser, de fato, agredido.
Tinta Bruta tem sido visto e premiado mundo afora. De onde vem a identificação de lugares tão diferentes?
Marcio Reolon: Por mais que seja ambientado em Porto Alegre, o filme ressoa como Brasil e também como várias outras partes do mundo. É um filme de personagem, com foco na vida humana. Muita gente, em lugares diferentes, passa por problemas como os do Pedro.
Felipe Matzembacher: Tem sido muito interessante ouvir reações de pessoas, de vários lugares do mundo, dizendo “consegui enxergar minha cidade aí”. Acho que olhamos para Porto Alegre como uma personagem dessa história, e essa personagem está espalhada pelo mundo, com outras caras.
A conclusão Tinta Bruta é o que se chama de “final aberto”. Por que essa opção?
Marcio Reolon: O filme é, em sua essência, uma história entre jornadas. Começa depois que o crime do qual Pedro é acusado já aconteceu e termina antes do seu julgamento. Optamos por isso porque o julgamento seria a opinião de uma instituição imersa nessa sociedade retrógrada, machista e homofóbica que não nos interessa. O que nos interessava era mostrar a forma pela qual o personagem se transformou diante dessas partidas e abandonos.
Diante da perspectiva de um governo conservador, o que vocês imaginam que vá acontecer com o cinema brasileiro?
Marcio Reolon: Ainda é cedo para projetar e nós esperamos que os órgãos públicos ligados à cultura continuem percebendo que o audiovisual brasileiro é prestigiado no exterior; gera empregos e renda e nós torcemos para que isso só cresça.
Felipe Matzembacher: O audiovisual brasileiro é respeitado fora do País. Se estamos diante de um governo que coloca o patriotismo como valor, respeitar esse produto nacional valorizado no exterior, por uma questão de coerência, é ser patriota também.