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Festival de Cannes 2019 - Dia #03 Festivais e Mostras

DIA 03

 

6) Animação não é gênero, mas técnica. Longe de restringir-se a produções voltadas para o público infantil, é um recurso estético e narrativo que pode ser empregado tanto para suavizar horrores a fim de torná-los digeríveis (como no documentário The Tower) quanto ressaltá-los de forma inigualável para expor seus efeitos (como em Gen Pés Descalços). Como resgate de memórias, pode assumir um caráter de pesadelo (Valsa com Bashir) ou de uma irreverência libertadora (Persépolis). Pois a produção francesa As Andorinhas de Kabul (Les hirondelles de Kaboul) se beneficia um pouco de tudo isso: ilustra o pavor do regime Talibã no Afeganistão de 1998 sem enviar o espectador correndo para fora da sala, mas não o higieniza a ponto de torná-lo inócuo; cria um universo plasticamente atraente sem romantizá-lo; e, o mais importante, o preenche com personagens e uma história notáveis.

Os personagens em questão são o talibã Atiqq (voz de Simon Abkarian), que, ferido na guerra com os russos, agora serve como diretor de um presídio para mulheres que abriga as condenadas à morte; sua esposa Mussarat (Hiam Abbas), que se encontra em fase terminal de câncer; o ex-professor de História Mohsen (Swann Arlaud), que passa os dias visitando os prédios abandonados da universidade na qual lecionava antes que esta fosse fechada pelos teocratas; e sua companheira Zunaira (Zita Hanrot), uma artista que, sem conseguir se conformar com as limitações impostas às mulheres, opta por passar os dias trancada dentro de casa – isto é, até que em um raro passeio com o marido é abordada por guerrilheiros que a repreendem pesadamente por usar sapatos brancos.

Presos e reprimidos num regime que condena a Arte, elimina direitos femininos, fecha instituições de ensino que não se limitem a pregar seus valores e aterroriza a população com patrulhas que disparam dezenas de tiros aleatoriamente pela cidade, aqueles indivíduos testemunham a degradação do país que amavam e cujo governo insiste em desumanizar suas minorias e em insuflar ódio entre a população, deixando rapidamente de lembrar a sociedade progressista que antes prometia um futuro melhor – e até mesmo alguns dos que antes acreditavam nos novos líderes e os apoiavam começam a questionar o rumo que as coisas tomaram.

Assim, quando flashbacks pontuais cobrem as ruínas da cidade com as imagens de um passado melhor que rapidamente se distancia, o filme coloca o público na mente de seus desiludidos personagens com eficácia admirável. Além disso, o design de produção, com seus tons pastéis dominantes e melancólicos, é hábil por ainda assim conferir certa beleza (triste) àqueles espaços. Enquanto isso, a animação exibe sua qualidade através de detalhes como a gesticulação nervosa do protagonista ou o rápido movimento dos olhos de um casal que se encara com afeto. Para completar, as diretoras Zabou Breitman e Eléa Gobbé-Mévellec evocam a sufocante angústia de Zunaira sob a pesada burca através de “câmeras” subjetivas claustrofóbicas, extraindo também suspense no terço final ao mesmo tempo em que encontram uma justa ironia na predominância daquelas vestes durante uma busca raivosa por uma multidão de mulheres.

Em sua essência, contudo, As Andorinhas de Kabul é o retrato de uma sociedade que não percebeu como caminhava rumo ao precipício até que fosse tarde demais e também um libelo sobre a importância de pequenos gestos de resistência no processo para retornar à estrada.

 

7) Atlantique, produção franco-senegalesa, é um filme curioso: depois de iniciar com uma proposta narrativa quase documental ao retratar a frustração de um grupo de operários diante dos atrasos contínuos de seus salários, esta obra da diretora estreante Mati Diop passa rapidamente pelo romance juvenil, flerta com o policialesco até cair desajeitadamente no horror. Um horror que deseja ser ao mesmo tempo uma história de amor e um protesto político.

Infelizmente, os resultados são no mínimo frustrantes, jamais fazendo jus às nobres ambições da realizadora.

Acompanhando em boa parte do tempo a jovem Ada (Mame Bineta Sane), que, prestes a se casar em um arranjo familiar com um sujeito rico, é na verdade apaixonada por um operário pobre que desapareceu no mar ao tentar emigrar para a Espanha, o roteiro logo divide sua atenção ao enfocar também um detetive novato que, responsável por investigar um incêndio misterioso ocorrido no casamento da protagonista, vem sofrendo desmaios súbitos e inexplicáveis. Enquanto isso, as moças da região sofrem frequentes ataques de sonambulismo que deixam seus olhos completamente brancos, como se possuídas, o que coincide com a possibilidade de que o amado de Ada esteja vivo e seja o causador do fogo.

Confuso? Pois é.

Mas piora: um dos problemas do roteiro de Diop e Olivier Demangel é a inconsistência nas “regras” de sua história – não havendo motivo razoável, por exemplo, para que o detetive apresente os mesmos sintomas das amigas de Ada (além, claro, de exigir uma coincidência mais difícil de aceitar do que a explicação sobre os acontecimentos da trama). Além disso, embora exija do espectador uma identificação profunda com o coração partido da protagonista, Atlantique pouco faz para nos convencer da dimensão daquele amor, já que vemos o casal em uma única e breve sequência.

Salpicando a montagem com planos que enfocam de forma desinteressante e óbvia o oceano e encerrando a projeção com um monólogo cafona, esta é uma obra que, por contraste, comprova como o equilíbrio entre tons e gêneros alcançado pelo brasileiro Bacurau é uma proeza difícil e, por esta razão, digna de aplausos.

 

8) O horror da guerra não acaba quando esta chega ao fim, apenas muda de rosto: o temor pela própria vida se converte na culpa por ter sobrevivido; a “necessidade” da violência cede lugar à obrigação de se readaptar ao convívio em sociedade; e a brutalidade testemunhada jamais abandona a mente totalmente, não sendo raros a depressão e o suicídio entre veteranos de guerra. A guerra altera a lógica da relação entre os humanos e isto permanece.

Em Beanpole, esta é uma questão que jamais abandona a mente do diretor russo Kantemir Balagov: ambientado em Leningrado logo após o fim da Segunda Guerra, o filme tem início com o rosto petrificado da protagonista, Iya (Viktoria Miroshnichenko), em uma de suas frequentes convulsões resultantes de ferimentos no campo de batalha. Agora morando em um apartamento comunal antigo, frio e cheio ao lado do pequeno Pashka (Timofey Glazkov), a moça atua como enfermeira em um hospital de soldados, saindo todos os dias na madrugada gelada de inverno para pegar o bonde lotado que a levará até seu trabalho. É então que uma antiga companheira do exército, Masha (Vasilisa Perelygina), retorna para morar com a amiga – e é justamente a complexa dinâmica entre as duas mulheres que conduzirá a obra.

Há, no entanto, um elemento importante que não mencionei e que, inclusive, inspira o título do longa: Iya é uma mulher altíssima, destacando-se no meio de qualquer multidão, e desta forma está sempre exposta ao escrutínio alheio. Se sofre, sua dor é projetada para o mundo e, assim, como meio de defesa, ela parece estar sempre encolhida e sua voz mal pode ser ouvida. Masha, por sua vez, pode parecer diminuta ao lado da amiga, o que lhe permite ocultar por mais tempo sua profunda perturbação psicológica – a menos que notemos seu curioso olhar que, tentando sugerir afeto e alegria, traz uma intensidade que revela uma tempestade sob a superfície.

Não que muitos – além de Iya, que tem suas próprias razões - se esforcem para perceber isso, já que todos oscilam entre a felicidade pelo fim da guerra e a angústia provocada pelas sequelas físicas, emocionais e psicológicas deixadas por esta (e é comovente, por exemplo, observar o júbilo dos pacientes do hospital apesar dos membros arrancados por tiros e estilhaços). Enfrentando a feiura nascida das (ou intensificada pelas) batalhas, a Leningrado retratada em Beanpole é um lugar no qual uma criança não consegue sequer imitar um cachorro numa brincadeira por jamais ter visto um, já que todos foram devorados pelos humanos famintos – e elogiar o retrato dos filhos de alguém é algo imediatamente acompanhado pela pergunta “Eles ainda estão vivos?”.

Neste sentido, a própria relação entre Iya e Masha é uma extensão da lógica belicista - esta última, em particular, agindo sempre de forma estratégica e usando a chantagem emocional e as próprias dores como arma. Isto, contudo, não a torna uma má pessoa; apenas alguém que perdeu muito e não faz ideia de como seguir, saltando do hedonismo à autopunição de maneira quase aleatória. Aliás, o belíssimo design de produção reflete a dinâmica entre as personagens através do ótimo uso de cores, ligando o verde e o vermelho a Iya e Masha, respectivamente, e fazendo com que estas matizes se contaminem mutualmente aos poucos, invadindo os espaços uma da outra (nas roupas, nas paredes e nos objetos de cena) até que uma inversão completa ocorra.

Construído a partir de planos que, não raro, se estendem por vários minutos, Beanpole é uma experiência densa e que não teme ser desagradável para o público, trazendo ainda aquela que certamente será uma das cenas de sexo mais deprimentes e degradantes (para todos os envolvidos) que o Cinema produzirá em 2019. Curiosamente, na edição anterior do festival, outro trabalho exibido na mostra Un Certain Regard contava com uma transa “memorável”: o sueco Border.

Estou até com medo antecipado da que virá em 2020.

 

9) Em certo momento de Sorry We Missed You, novo trabalho do britânico Ken Loach, vemos de passagem um homem passeando com seu cachorro de três patas – uma imagem já vista algumas vezes na filmografia do diretor e que resume perfeitamente boa parte dos personagens que este costuma retratar: homens e mulheres que, diante de todas as dificuldades, seguem adiante mesmo conscientes de que provavelmente passarão toda a vida enfrentando os mesmos obstáculos.

Verdadeiro mestre em retratar o drama do proletariado contemporâneo (seu último longa, Eu, Daniel Blake, venceu a Palma de Ouro em Cannes há dois anos), Loach aqui volta seu compassivo olhar para a família Turner: Ricky (Kris Hitchen), Abbie (Debbie Honeywood) e os filhos Seb (Rhys Stone) e Liza Jane (Katie Proctor). Desempregado há algum tempo, Ricky acaba de acertar um contrato com a empresa de entregas gerenciada pelo pragmático Maloney (Ross Brewster), um desses empregadores que insiste em dizer coisas como “você não trabalha para nós, mas conosco” – uma frase ao mesmo tempo condescendente e maldosa, já que o que significa de fato é que, como autônomo (ou, em bom português, “pêjota”), o “funcionário” terá todas as obrigações, mas nenhum dos direitos que deveria. O mesmo se aplica a Abbie, que, cuidadora de idosos, recebe pelas várias visitas que faz diariamente, mas não pelo tempo gasto nestas ou durante o deslocamento entre clientes (palavra que detesta, por sinal). “Você trabalha de 7h30 às 21h?”, se espanta uma das velhinhas atendidas pela mulher, completando: “O que aconteceu com as oitos horas por dia?”.

Representantes de milhões de pessoas que se labutam apenas para sobreviver (“melhorar de vida” é o sonho sempre distante que usam para não enlouquecer), Ricky e Abbie mal podem passar tempo com os filhos, que, claro, não demoram a exibir as consequências da ausência dos pais. Isto, porém, não é algo que desperte a compaixão de seus patrões, sendo mais fácil encontrar solidariedade numa estranha em um ponto de ônibus do que nos indivíduos que lucram com seu suor – o que é sintetizado num monólogo de Maloney que, temo, provavelmente despertará a admiração de uma parcela dos espectadores que deveria reconhecer neste a verbalização da exploração à qual são submetidos diariamente.

Para gente como o casal Turner, no entanto, a lógica capitalista é uma realidade tão absorvida que o máximo que podem fazer é ensaiar um protesto que não seja sério a ponto de lhes custar o emprego. Não que lhes falte consciência de estarem em um jogo com cartas marcadas, já que sabem, por experiência própria, que quando a elite econômica brinca com o sistema financeiro quem acaba pagando são os miseráveis na ponta, que perdem suas casas, as economias e quaisquer perspectivas de uma velhice confortável. Ainda mais perversa, porém, é a percepção de que seus filhos tampouco podem esperar algo melhor, já que, num sistema como aquele em que vivem (e que, temo, será o nosso), frequentar uma universidade é contrair uma dívida para quase toda a vida – e o pior: sem a promessa de um futuro profissional, posto que o mercado de trabalho se encolhe a cada ano em função da automatização e do crescimento da demanda por novos empregos (principalmente quando a aposentadoria se converte em utopia).

Em meio a toda esta reflexão (e também para torná-la eficaz pela identificação), Ken Loach concebe personagens cuja humanidade salta da tela e que são vividos por um elenco essencialmente de estreantes talentosíssimos que não demoram a levar o espectador a amar aquela pequena família – a ponto de torcermos para que o filme não tenha conflitos dramáticos, já que desejamos testemunhar só a felicidade destas pessoas. Neste sentido, alguns dos instantes mais tocantes do filme são aqueles que surgem de gestos de afeto (e confesso ter chorado copiosamente diante de uma conversa cheia de doçura entre Ricky e a filha enquanto lancham).

Mas por mais que aqueles atores e atrizes brilhem (e como brilham), não há como negar que por trás destes há a sensibilidade de Ken Loach e sua ternura para com a classe trabalhadora – e sua natureza humanista é exposta de modo claro quando, numa cena situada em um hospital, o diretor não resiste ao impulso de lançar seu olhar para os demais homens e mulheres que esperam horas por um atendimento.

Neste aspecto, Loach me faz lembrar do saudoso mestre Eduardo Coutinho. E o Cinema – não; o mundo! – precisa de mais pessoas como estes dois magníficos artistas.

16 de Maio de 2019

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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