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Festival de Cannes 2019 - Dia #06 Festivais e Mostras

DIA 06

 

19) Um dos fatores que mais me encantaram em Family Romance, LLC, novo trabalho do gênio alemão Werner Herzog, foi perceber como o filme obviamente foi construído com uma estrutura solta, aberta ao acaso, e produzido com a energia e o impulso de um jovem. É admirável como, aos 76 anos, Herzog conta ainda com um impulso criativo, uma necessidade de contar histórias, que o leva a decidir pegar a câmera e filmar mesmo sem grandes recursos à sua disposição.

Pois é patente que este projeto não envolveu um grande orçamento: basicamente todo rodado com grandes angulares, sem um aparato de fotografia complexo (a impressão é a de que ele contou no máximo com um rebatedor de luz e olhe lá) e empregando apenas locações em Tóquio e arredores, o longa é uma ficcionalização com elementos de documentário sobre uma empresa japonesa especializada em fornecer “parentes” ou “amigos” para pessoas em busca de companhia para si mesmas ou para terceiros. Quando a projeção tem início, por exemplo, vemos o dono/astro da empreitada, Ishii Yuichi (supostamente interpretando uma versão de si próprio), aguardando o primeiro encontro com a adolescente Mahiro (Mahiro Tanimoto), para a qual se apresenta como sendo o pai que ela não vê desde que tinha 2 anos de idade (ele foi secretamente contratado pela mãe da garota). Já em outra ocasião, o sujeito – agora acompanhado por vários funcionários – assume o papel de paparazzo ao seguir uma outra cliente interessada em se passar por famosa a fim de... bom, se tornar famosa.

Ao longo dos breves 90 minutos de filme, conhecemos alguns outros fregueses do curioso produto oferecido por Ishii, mas o que interessa de fato a Herzog é tentar compreender um pouco do mecanismo emocional por trás desta transação: se a pessoa não sabe que o “parente/amigo” é um ator contratado, isto torna o laço que cria legítimo? E qual é a recompensa psicológica obtida por alguém que sabe estar participando de uma encenação? Aliás, até que ponto estas “conexões” são um reflexo da sociedade contemporânea e seus relacionamentos virtuais? E, afinal, como o próprio Ishii Yuichi lida com isso? É afetado ou se envolve de alguma maneira real?

No processo de tentar responder essas perguntas (que não responde – e como poderia fazê-lo?), o cineasta passeia com sua câmera por um parque repleto de cerejeiras em flor, malabaristas e grupos encenando batalhas entre samurais, demonstrando a curiosidade que lhe é peculiar ao incorporar tudo que encontra na narrativa. Neste aspecto, até a qualidade primária da imagem acaba por se tornar um elemento com certo charme graças à sua crueza (há planos tão superexpostos que o rosto do protagonista parece uma animação em rotoscopia). Do mesmo modo, Herzog decide transformar algumas das tomadas originais, claramente rodadas em frame rate normal, em planos em câmera lenta, obtendo os esperados resultados precários com um blur horroroso.

A modéstia da produção, contudo, é mais do que compensada pelo olhar sempre inquisitivo do cineasta, que, de modo divertido e esperado (isto é, para alguém como Herzog), sai em tangentes curiosas quando algo lhe desperta a atenção, quando, então, encontra alguma forma de incluí-la organicamente na trama – e posso quase ouvir sua empolgação ao descobrir a existência de um hotel com funcionários-robôs ou da velhinha “oráculo” e imediatamente resolver ir até estes com seus atores para explorar as possibilidades.

E que consiga criar uma narrativa coesa mesmo com uma forma tão livre é um testemunho da experiência e do talento do mestre.

 

 

20) As instruções de Hades a Orfeu não poderiam ter sido mais claras: tudo que o poeta tinha a fazer era conduzir a amada Eurídice do mundo inferior, pertencente aos mortos, de volta à superfície sem olhá-la. Ainda assim, a poucos metros de ter seu amor de volta entre os vivos, Orfeu cedeu ao impulso, virou-se em sua direção e a condenou novamente à morte, perdendo-a para sempre. Mas por que ele desobedeceu a ordens tão explícitas? Estupidez? Arrogância? Displicência?

“Ele preferiu viver com a memória da amada”, teoriza a jovem Héloïse (Adèle Haenel) em certo momento do maravilhoso Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille em peu), completando: “Ele fez a escolha não do amante, mas do poeta”. Mesmo inexperiente no amor, a garota parece compreender a atração da idealização no romance, que, se por um lado é fruto da dor causada pela distância e pela saudade, por outro é doce e invejável por beirar a perfeição. Uma perfeição que, retroalimentando o ciclo, torna a dor da saudade ainda maior.

Escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma, o longa acompanha a jovem pintora Marianne (Noémie Merlant), que, contratada por uma condessa (Valeria Golino) para retratar sua filha Héloïse, viaja para a ilha na qual estas residem e lá descobre que deverá cumprir a tarefa em segredo, já que a moça se recusa a posar por saber que seu retrato será enviado para um pretendente em Milão que a tornará sua esposa caso aprove sua aparência. Assim, nos dias seguintes Marianne se passa por uma acompanhante contratada pela condessa para fazer companhia a Héloïse enquanto busca memorizar os detalhes de seu rosto para completar o quadro durante a noite.

Fotografado magistralmente por Claire Mathon, que compreende como o filme deve fazer jus plasticamente ao talento da protagonista como pintora, Retrato de uma Jovem em Chamas adota uma abordagem narrativa contemplativa, quieta, que contrasta com o tumulto interno crescente das duas jovens à medida que se tornam próximas e desenvolvem uma atração mútua, empregando bem as belezas naturais das locações para criar espaços que surgem ideais para despertar ideias românticas. Da mesma maneira, o design de produção de Thomas Grézaud e os figurinos de Dorothée Guiraud refletem as diferenças entre as personalidades das garotas ao envolvê-las em cores que destoam e se complementam na mesma medida: vermelho para Marianne, verde (e, pontualmente, azul) para Héloïse. Além disso, a fotografia explora bem os elementos da mise en scène para criar quadros memoráveis como aquele no qual vemos as duas personagens acompanhadas da criada Sophie (Luàna Bajrami) atrás da mesa da cozinha e diante do fogo e, claro, o que inspira o retrato do título. E, claro, o plano plongée que enfoca Sophie deitada em uma cama ao lado de um bebê que insiste em chamar sua atenção enquanto ela passa por um aborto.

Aliás, esta é outra passagem essencial do longa ao estabelecer o apoio imediato dado à moça em sua decisão de abortar, já que em nenhum momento o ato é contestado ou condenado pelas outras. Neste aspecto, mesmo ambientado no final do século 18, Retrato de uma Jovem em Chamas não poderia ser mais contemporâneo: Marianne, por exemplo, explica como as mulheres não têm permissão para pintar homens nus e insiste que esta é uma forma de limitar o sucesso das artistas ao impedi-las de estudar a anatomia masculina. Do mesmo modo, a harmonia alcançada na ausência de figuras masculinas logo se torna incontestável – e quando finalmente vemos um homem em cena, a sensação é a de invasão de um espaço antes seguro.

A maior beleza da obra, no entanto, reside na delicadeza com que desenvolve a atração crescente entre as duas mulheres e o relacionamento que surge como resultado: do suspense inicial para revelar o rosto de Héloïse à sensualidade presente no simples ato de Marianne analisar os detalhes de suas feições, pescoço e mãos, a diretora Céline Sciamma leva o espectador a experimentar cada sobressalto de reconhecimento de que algo especial está ganhando vida. É fascinante, por exemplo, notar como Héloïse se solta pouco a pouco, indo da insistência em manter o cenho fechado à pura incapacidade de deixar de sorrir ao olhar para a amada – e o próprio processo de criação do retrato por Marianne se torna um símbolo de seu amor crescente, que lhe permite enxergar com mais clareza e profundidade sua modelo-musa.

O que nos traz de volta à ação fatal de Orfeu e que ganha um paralelo na observação de Héloïse sobre como Marianne acabará visualizando mentalmente o retrato sempre que se lembrar dela, que, assim, se tornará menos carne e mais ícone. E este, afinal, é o dilema que vivem: desesperadas diante da separação iminente, que as deixa com a sensação de terem desperdiçado o pouco tempo que tiveram juntas (e, quando amamos, todo segundo distante do objeto de afeto é um desperdício), as duas sabem que a memória do que viveram se consolidará como o bem mais precioso e também o mais excruciante que possuem. Algo sintetizado no magnífico e inesquecível plano que encerra a projeção e que nos lembra de como esta é uma contradição que todos – ao menos, os mais sortudos entre nós – aprenderemos um dia.

 

21) Franz Jägerstätter morreu por não aceitar matar. Fazendeiro que levava uma vida pacata com a esposa em um vilarejo na Áustria, ele se opôs quase que de imediato aos comandos nazistas em seu país, recusando o posto de prefeito que lhe foi oferecido por estes e se negando a lutar pelo exército de Hitler ou a aceitar qualquer posição que exigisse um juramento de lealdade a este. Por sua determinação, foi julgado e condenado à morte, sendo esquecido pela História por algumas décadas até ter seu martírio descoberto por um sociólogo norte-americano e transformado em livro – e, agora, em filme.

Se você gritou “spoiler!” ao ler o parágrafo acima, provavelmente não conhece o Cinema do diretor do longa, Terrence Malick, cujas narrativas são à prova destes, já que o que importa é menos o que acontece e mais as reflexões que inspira. E o que vemos aqui é a imagem de um homem que, ciente de estar prestes a morrer, exibe um tremor de medo que paradoxalmente revela sua inabalável coragem e firmeza de caráter - pois só alguém firme em suas convicções não as renega diante do pânico.

Abandonando na maior parte do tempo a estrutura ensaística de seus filmes mais recentes – em especial de A Árvore da Vida para frente -, Malick aqui constrói o longa em torno de uma história com definições mais claras, saltando entre Franz (August Diehl) e sua esposa Franziska (Valerie Pachner) enquanto aquele é conduzido de um cárcere a outro até o julgamento e esta é vítima do desprezo dos demais habitantes de seu vilarejo, que a condenam por julgarem a recusa do marido um ato de covardia e traição. Como fio condutor, o roteiro do próprio cineasta emprega as cartas trocadas pelo casal ao longo dos meses e que são lidas em tons sussurrados e melancólicos pelos atores – uma marca registrada de seu Cinema.

Esteticamente, aliás, A Hidden Life segue a linha autoral do realizador com fidelidade, trazendo passagens nas quais a câmera enfoca as mãos de Franz e Franziska cavando a terra e plantando batatas em planos-detalhe fechadíssimos e outras nas quais a steadicam operada por Jörg Widmer – um dos melhores em sua área – segue de perto as filhas do protagonista enquanto correm por douradíssimas plantações de trigo e revela o cotidiano paradisíaco do vilarejo em que moram. Sempre em movimento, a câmera de Widmer (também diretor de fotografia) rivaliza com aquela dos projetos de Tom Hooper no que diz respeito ao uso de grandes angulares – com a importante diferença que Widmer sabe por que e como empregá-las, utilizando-as para expandir os cenários em torno do protagonista, diminuindo-o, e para ressaltar a atmosfera angustiante que marca sua situação (e notem como o martelo do juiz vivido por Bruno Ganz parece gigantesco em sua mão ou como a mesa entre Franz e a esposa durante uma visita na prisão surge imensa, deixando-os ainda mais separados).

Este tom opressivo, como não poderia deixar de ser, espelha com perfeição a sensação experimentada por Franz de que o mundo parece ter enlouquecido ao seu redor, já que as pessoas demonstram uma triste incapacidade de reconhecer o horror do que apoiam e a monstruosidade patente do líder que o advoga. Ao mesmo tempo, a música de James Newton Howard é de constante lamento, ao passo que a montagem de Rehman Nizar Ali, Joe Gleason e Sebastian Jones desaceleram o tempo até o limite, surpreendendo com frequência o espectador ao revelar como o que julgamos serem anos não passam de poucos meses, refletindo a tortura de uma situação sem esperança.

Não que isto atire o casal no desespero completo, já que, embora cientes da gravidade das circunstâncias, encontram apoio um no outro e em sua Fé – e, não à toa, suas vozes em off revelam não apenas o conteúdo de suas cartas, mas suas conversas particulares com Deus e a convicção de que este os responderá.

E é claro que esta resposta nunca vem.

Comprovando mais uma vez a habilidade de Terrence Malick para criar um Cinema de sensações, A Hidden Life é uma obra que praticamente nos faz sentir o vento que move as plantações, o calor de um dia árduo de trabalho, o frio de um inverno rigoroso, o cheiro da grama molhada e os sentimentos de paz, tranquilidade, alegria, desesperança, angústia e desilusão experimentados pelos personagens – inspirando, consequentemente, uma admiração ainda maior pela integridade de Franz Jäggerstätter.

“É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”, diz alguém em certo momento da projeção ao buscar explicar por que um simples fazendeiro se mostra disposto a perder tudo por suas convicções. É um princípio simples, mas que define a distância entre os indivíduos que se colocam acima dos demais e aqueles que entendem como nada compensa a perda da própria humanidade.

19 de Maio de 2019

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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