Vencer uma competição – não importa qual ela seja – não significa, necessariamente, ser o melhor filme de determinado ano. Júris de festivais, e a Academia do Oscar, são falhos, subjetivos e nem sempre escolhem a obra que será consagrada pela história. Ainda assim, a proposta desta coluna é revisitar as produções vencedoras nas quatro premiações de maior visibilidade e prestígio do cinema – os Festivais de Berlim, Cannes e Veneza, e o Oscar – desde o ano em que eu nasci (1984) até os dias de hoje.
Mas se os prêmios não são garantia de uma qualidade atemporal, por que revisitar esses longas? Porque suas vitórias dizem muito do que era considerado “excelência” no cinema em suas respectivas épocas. Elas são registros daquele momento específico na cultura, das questões que se mostravam mais prementes, das características técnicas e temas considerados mais relevantes. De uma forma inegável, esses filmes contam uma breve história do cinema nos últimos 35 anos.
E é isso que estas colunas pretendem abordar. Cada uma delas vai falar sobre um filme específico, respeitando sempre a proposta cronológica de sua premissa: começando cada ano pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim, seguindo pelo vencedor do Oscar, a Palma de Ouro em Cannes e encerrando com o Leão de Ouro em Veneza. O que nos leva, sem mais delongas, ao Urso de Ouro de 1984...
“A vida é uma série de suicídios, divórcios, promessas quebradas e crianças espancadas”
Um dos aspectos mais curiosos de Amantes é exatamente essa tradução brasileira do título original, Love Streams (“Correntezas de Amor”). Na superfície, ela parece um erro marqueteiro: por mais que o filme nunca deixe isso muito claro, a não ser por um “irmã” que escapole da boca de Robert em uma conversa no telefone, os dois protagonistas Robert Harmon (John Cassavetes) e Sarah Lawson (Gena Rowlands) não são parceiros amorosos, e sim irmãos.
Num certo sentido, porém, o título nacional é poeticamente adequado. Porque o longa de 1984 é o retrato de dois personagens emocionalmente adoentados – atormentados e consumidos por sua incapacidade de estabelecer relações funcionais com outras pessoas. E o amor genuíno, e inquestionável, que sentem um pelo outro é provavelmente a única emoção saudável que eles alimentam – e que os mantêm vivos durante a produção. “Você a ama?”, pergunta o filho de Robert. “Não do jeito que você quer dizer”, responde o protagonista. “Você a beija?”, questiona o garoto. “Não do jeito que você quer dizer”, ele repete.
Mesmo assim, esse laço só começa a ser revelado e estabelecido com quase uma hora de filme, quando os dois protagonistas se encontram pela primeira vez. E isso deixa claro como Cassavetes está pouquíssimo, ou nada, interessado numa ideia tradicional de “trama” em Amantes. A sinopse original da peça do canadense Ted Allan em que o longa se baseia (e que o próprio cineasta havia montado no palco no início dos anos 80) fala de dois irmãos autodestrutivos de meia-idade, o escritor mulherengo Robert Harmon e a recém-divorciada Sarah Lawson, que passam a cuidar um do outro “após serem abandonados pelos outros amores de suas vidas”. Mas essa historinha é mera desculpa para o que realmente interessa a Cassavetes no material: os personagens.
Tudo em Amantes é personagem. As locações, o design de produção, os enquadramentos, o figurino, a trilha... Sarah é quase sempre filmada durante o dia porque é intensa e incontrolável como o sol e como o rosa e roxo fortes de suas roupas – a exemplo da sequência no abrigo de animais, onde compra quase um zoológico inteiro para o irmão – até sucumbir à escuridão noturna na crise depressiva do fim do filme. É dela a frase que dá o título original à produção, “o amor é uma correnteza, é contínuo, não para”, e é essa incapacidade de controlar e comedir o próprio amor que faz com que o marido e a filha a abandonem no início do longa.
Já Robert é retratado à noite porque é sombrio e inescrutável como ela. Mesmo nas cenas pela manhã, ele é um daqueles homens que sempre parecem ainda estar vivendo a noite passada. Sua casa (curiosamente, a casa do próprio Cassavetes), lotada de bebidas, amantes sem muita identidade e cômodos fechados e claustrofóbicos, é a descrição perfeita de sua vida. Como escritor, Robert se diz interessado apenas em mulheres. Mas ele não sabe amá-las: invade o carro da cantora Susan (Diahnne Abbott) e, bêbado, a assedia abusivamente, num exemplo de como as trata apenas como objetos de inspiração, pesquisa e desejo. “Uma bela mulher deve oferecer ao homem seus segredos”, ele diz.
Todos esses elementos fazem de Amantes um dos grandes exemplares de como Cassavetes era capaz de atingir uma profundidade dramatúrgica própria do teatro usando ferramentas cinematográficas. E essa capacidade de síntese e exploração dos personagens por meio da câmera fica ainda mais evidente em duas sequências em que os protagonistas se deslocam de suas zonas de conforto para tentar resolver seus problemas:
Na primeira, Sarah aterrissa em Paris, após seu psiquiatra sugerir que ela viaje e transe com alguém para superar o divórcio. Uma mulher com muita bagagem (em todos os sentidos), a protagonista precisa pedir ajuda para carregá-las, em inglês, ao funcionário do aeroporto, que só fala francês. Para além da habilidade inigualável de Gena Rowlands de mesclar comédia física, melancolia e histeria na mesma cena, Cassavetes sintetiza em uma única sequência a incapacidade da personagem de se comunicar com o resto do mundo, com sua intensidade incômoda e descalibrada. E mostra como isso é sua prisão, simplesmente filmando tudo por trás da grade do aeroporto.
Na outra sequência, a ex-esposa pede que Robert cuide do filho de oito anos, Albie (Jakob Shaw), por um dia, e o escritor decide levá-lo para Las Vegas (se você acha que isso é uma péssima ideia, minutos antes ele serve cerveja para o garoto e manda que vire o copo). Ao chegar à cidade, Robert deixa o menino sozinho no quarto de hotel e passa a noite com prostitutas. O escritor diz a Albie que “odeia homens” e, quando volta da noitada, seu smoking sujo de batom é claramente a fantasia/uniforme dessa ideia detestável de “homem”, deixando claro que o que o protagonista realmente odeia é a si mesmo.
O que o diretor parece querer em Amantes é mergulhar nessas duas pessoas extremamente complexas, um tanto inescrutáveis, disfuncionais, perturbadas, instáveis, nem sempre coerentes, quase nunca muito agradáveis, e dar vida a elas. Transformá-las em seres humanos de carne e osso com as quais o espectador se importe, ainda que nem sempre concorde com elas. Cassavetes não quer redimir, justificar, salvar ou melhorar Robert e Sarah – quer simplesmente interpretá-los, em todos os sentidos do verbo. Não por acaso, o diretor de fotografia Al Ruban (parceiro de longa data do cineasta) insiste em enquadrar os protagonistas sob molduras de portas: seres humanos formatados e presos por suas deficiências emocionais, observados e analisados como duas pinturas/obras de arte.
É nesse sentido que o longa é uma culminação fascinante da parceria do cineasta com sua esposa, Gena Rowlands – o décimo e último de seus filmes juntos. A essa altura, Cassavetes, com dois Leões de Ouro em Veneza (por Faces e Gloria) não precisava provar a ninguém que era um grande cineasta. Diz-se, inclusive, que muitas das cenas de Amantes contaram com a ajuda de seu amigo Peter Bogdanovich na direção (cirrótico, Cassavetes estava bastante doente durante as filmagens e havia recebido dos médicos o prognóstico de apenas mais seis meses de vida antes de iniciar a produção, mas viveria até 1989). Mais do que confirmá-lo como grande realizador, no entanto, Amantes é, acima de tudo, uma afirmação dele e Rowlands como dois dos maiores intérpretes da história do cinema – e da importância do casal na frente das câmeras.
Ao mostrar a dupla destrinchando com maestria dois personagens de uma complexidade e dificuldade assustadoras, o longa não é só um forte exemplar da ideia do ator como coautor/colaborador do processo cinematográfico, mas o registro de Cassavetes e Rowlands como intérpretes únicos, de escolhas ousadas, inusitadas, de compreensão profunda da psicologia de seus personagens e de como comunicá-la por meio da câmera.
Amantes é, de certa forma, o adeus a esse casamento único na frente das câmeras. E os planos finais do longa são perfeitos para isso. Eles mostram Sarah e Robert por trás de vidros cobertos pela chuva, dois rostos hipnóticos e enigmáticos, embaçados, ainda difusos, ainda no meio da tempestade que são suas vidas. Desafiando o espectador a compreendê-los. Tudo em Amantes é personagem. Tudo em Amantes é Cassavetes e Rowlands.
A Competição
Amantes desbancou uma concorrência de peso no Festival de Berlim de 1984. Na disputa pelo Urso de Ouro, Cassavetes estava acompanhado por nomes como Louis Malle (Alta Incompetência), Maurice Pialat (Aos Nossos Amores), Samuel Fuller (Ladrões do Amanhecer), Ettore Scola (O Baile) e um grande autor despontando no cinema mundial: Roland Emmerich. Sim, ele mesmo, o diretor de filmes-catástrofe como Independence Day e O Dia Depois de Amanhã, e que exibiu no festival seu Das Arche Noah Prinzip, ou O Princípio da Arca de Noé, nunca lançado no Brasil.
Da lista, O Baile (Urso de Prata de direção) é provavelmente o mais reconhecido – e citado – pela cinefilia contemporânea, até mais que o próprio Amantes. Isso diz menos, porém, de uma diferença de qualidade entre os dois filmes, e mais de como a filmografia de Cassavetes sofre para ter a visibilidade que merece em meio à manada de outros mestres mais populares do cinema americano. Ambas são obras únicas, que oferecem o melhor de seus autores e merecem ser visitadas hoje com o mesmo fervor que despertaram 35 anos atrás.
Onde encontrar: Amantes foi lançado no Brasil pela Versátil, em um box do com três longas do diretor John Cassavetes (http://www.dvdversatil.com.br/a-arte-de-john-cassavetes/)
17/07/2019
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