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Ano 01, Filme 04 The Winner Is...

Em Unbearably White, uma das melhores canções de seu mais recente (e excelente) álbum Father of the Bride, o Vampire Weekend canta que confrontados com a escuridão / voltamo-nos para a luz / pode ser uma decisão inteligente / ou apenas insuportavelmente claro. De um jeito curioso, essa poderia ser a síntese de O Ano do Sol Tranquilo (Rok spokojnego slonca).

O filme do polonês Krzysztof Zanussi, vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza em 1984, é a história de pessoas que, habitando um mundo sombrio, tentam buscar a luz – e, ao chegarem muito perto, descobrem que ela também pode ferir. Logo na cena inicial, a protagonista Emilia (Maja Komorowska) olha para a claridade na janela do trem quando afirma acreditar que a vida vai melhorar. Pouco depois, ela aparece novamente olhando para o sol ao pintar uma tela dentro da carcaça de um carro. Por sua vez, o militar Norman (Scott Wilson) se guiará pela luz de duas janelas ao tentar reencontrar a mulher por quem se apaixonou.

No entanto, no primeiro momento em que essa luz ganha tons mais quentes, por meio de uma vela, ela também queima o cabelo de Emilia. E no penúltimo plano do longa, quando uma personagem morre, será ao sucumbir diante da luz ofuscante de uma janela.

O Ano do Sol Tranquilo é um exemplar perfeito daquela máxima de que cinema (ou fotografia) é pintar com luz – não por acaso, Emilia é uma pintora diletante. O longa narra o melancólico romance entre ela – uma viúva polonesa retornando ao seu país no pós-guerra, em 1946 – e Norman, soldado norte-americano destacado para a Polônia como parte de uma comissão que deve investigar o extermínio de um grupo de militares aliados pelos nazistas. Os dois se conhecem logo nos minutos iniciais e têm um lento e complicado cortejo (simplesmente não falam a mesma língua), com Zanussi e seu diretor de fotografia Slawomir Idziak (A Liberdade é Azul, Falcão Negro em Perigo, Gattaca) desenhando todo esse relacionamento com a luz.

O longa começa com fortes contrastes eisenstenianos: grandes volumes de escuridão dominam a tela, contra um único e duro ponto de claridade. Mesmo essa luz é fria e áspera no rosto dos atores, ressaltando a aridez e o aspecto pouquíssimo convidativo da Polônia do pós-guerra – algo reforçado pelas locações reais. À medida que Emilia e Norman se aproximam, porém, o filme vai se iluminando e a paleta de cores muito lenta e gradualmente se abre, adotando tons um pouco mais quentes – o “sol tímido” do título. O auge disso é a cena em que os dois dançam em um baile – talvez o único momento em que a produção seja realmente tomada por cores quentes. Mas quando Norman é convocado a retornar para Berlim, à noite, O Ano escurece e a paleta se reduz novamente, com alguns planos chegando a abusar da contraluz.

Esse duelo entre luz e sombra sintetiza a grande questão do roteiro de Zanussi, que Emilia apresenta a um padre em certo momento: é possível ser feliz após a guerra – ou melhor: os sobreviventes têm direito de ser feliz, considerando o horror que dizimou tantas vítimas? Depois de tanto terror, ousar olhar para a luz pode ser realmente assustador, e não é por acaso que um dos primeiros presentes de Norman para sua amada é um par de óculos de sol. O filme é a história desses dois personagens, traumatizados por suas experiências no conflito, tentando redescobrir como voltar a viver. A certa altura, o casal anda de jipe e, no meio do caminho, se depara com uma vaca; quanto esta se move abrindo passagem, ativa uma mina terrestre, mas não morre. Talvez essa seja a síntese da vida no pós-guerra.

O mais curioso de O Ano do Sol Tranquilo é como todos esses elementos fazem dele uma enorme reverência a uma abordagem extremamente clássica do cinema. Krzysztof Zanussi foi um dos expoentes da nova onda do cinema do leste europeu, contemporâneo de Andrei Tarkovsky e um dos mentores de Krzysztof Kieslowski. Ainda assim, a trama de seu filme tem ares de Casablanca. A recorrente trilha de Wojciech Kilar, tão antológica quanto trágica e romântica, lembra muito Doutor Jivago. E a referência de EUA que Emilia e sua mãe (a ótima Hanna Skarzanka) têm são as imagens de No Tempo das Diligências.

O que o cineasta faz é retrabalhar todas essas referências dentro da austeridade narrativa e do típico apuro visual da produção do leste europeu. E o resultado só deve dividir um pouco as opiniões no seu ato final, guiado por uma série de escolhas que só fazem sentido dentro do contexto e das regras do melodrama – o que não seria um grande problema se, até ali, o longa não tivesse escapado de todas as armadilhas do gênero. Se o roteiro de Zanussi faz seus personagens tomarem uma série de decisões no mínimo questionáveis, elas se tornam menos arbitrárias graças às ótimas performances do elenco, com destaque para as veteranas Maja Komorowska (parceira de longa data do cineasta e de Andrzej Wajda) e Hanna Skarzanka.

Grandes críticos (como Roger Ebert, que inclui O Ano no seu livro Grandes Filmes), porém, não se importaram com isso. Talvez devido ao enorme volume de produções sobre o universo da Segunda Guerra, com abordagens e temáticas semelhantes, essas convenções se revelem hoje mais arquetípicas e artificiais. Ainda assim, a produção de Krzysztof Zanussi merece ser conferida pelo apuro técnico único com que as executa.

A Concorrência

Quando levou o Leão de Ouro em 1984 com O Ano do Sol Tranquilo, Krzysztof Zanussi havia acabado de receber o Grande Prêmio do Júri de Veneza em 1982, com o drama religioso-existencial Imperativ. A essa altura, o polonês já era um queridinho do Lido: Kontrakt e From a Far Country também haviam sido premiados no festival em 1980 e 1981, respectivamente.

Para faturar o prêmio principal, Zanussi desbancou quatro franceses de peso: Jean Rouch (com o subversivo Dionysos), Éric Rohmer (com o romântico Noites de Lua Cheia), Alain Resnais (com o sombrio Morrer de Amor) e Jacques Rivette (com o metalinguístico L’Amour par Terre). Uma das presenças mais curiosas na competitiva daquele ano, porém, foi Christopher Lambert como Tarzan, O Rei da Selva, em Greystoke.

Fora de Veneza, o cinema do diretor polonês também já era bastante reconhecido. Em 1973, ele havia vencido o Leopardo de Ouro em Locarno com Iluminação e, em 1980, o Prêmio do Júri em Cannes com Constans.

 

Onde ver: O Ano do Sol Tranquilo não é um filme tão popular/conhecido quanto os outros tratados aqui na coluna, então você deve gostar de saber que ele se encontra disponível na íntegra no YouTube. Boa sessão!

07/08/2019

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Sobre o autor:

Daniel Oliveira é crítico de cinema desde 2004. Foi freelancer para veículos como Folha de S. Paulo e, entre 2012 e 2018, foi repórter e crítico do jornal O Tempo. É formado em Comunicação Social pela UFMG, com especialização em História da Cultura e da Arte, e pós em Roteiro para Cinema e TV, pelo Humber Institute, de Toronto. No Canadá, trabalhou como leitor e analista de roteiros. Criou o site Pílula Pop e foi seu editor de 2004 a 2011. É mestrando em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, e membro da Abraccine.
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