“Legal, pessoal de Pernambuco falando inglês...”. A frase, dita durante o evento de lançamento de um filme nos anos 1990, no Rio de Janeiro, tinha como alvo o então crítico de cinema Kleber Mendonça Filho, que abriu mão do tradutor oferecido pela equipe e colheu, em troca, essa pérola de preconceito. Na época, Kleber escrevia para o Jornal do Commercio, do Recife, e já engatilhava a carreira de diretor, que começou com o curta Enjaulado, de 1997. Chegando ao quarto longa metragem, Kleber lembrou dessa história ao falar com a imprensa paulista, no lançamento de Bacurau, que recebeu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano e estreou nesta quinta (29 de agosto) no Brasil.
“Bacurau tem uma série de simbologias e observações sobre a vida no Nordeste, no Brasil e no mundo. Esse tipo de visão que eu registrei, lá nos anos 1990, de alguma forma foi parar no filme”, comentou o diretor, que divide os créditos pelo roteiro e pela direção de Bacurau com Juliano Dornelles, amigo há dezesseis anos e parceiro em diversos projetos anteriores, como Aquarius, O Som ao Redor, Recife Frio e Eletrodoméstica.
Juliano Dornelles (à esquerda) e Kleber Mendonça Filho
Juliano fala do ponto de partida para a criação de Bacurau, que começou a nascer em 2009. “Nós estávamos em um festival e nos incomodamos muito com a representação que o cinema brasileiro ainda fazia do Nordeste: preconceituosa, caricata, com base em um exotismo que nos agredia”, lembrou Juliano. O faroeste de Bacurau (no Oeste de Pernambuco, como informa uma das primeiras cenas) é uma fusão de absurdos. “O Brasil é um país rico em absurdos, e um filme de gênero como esse faz mais sentido quando reflete o mundo em que está inserido”, acrescentou Juliano.
Em um tempo no qual a autoridade executiva máxima do Brasil refere-se genericamente aos habitantes do Nordeste como “paraíbas”, Bacurau brinca violentamente com estereótipos. Os brasileiros do Sul que se acham semelhantes aos estrangeiros do Norte são alvejados por petardos de preconceito sobre sua pele e seu nariz. Aos olhos dos gringos de Bacurau, do Equador para baixo somos todos a mesma porcaria. Uma cena especialmente dramática tem como fundo a canção “True”, da banda Spandau Ballet. “Música americana”, diz a Domingas de Sônia Braga para Michael, personagem de Udo Kier. A escolha da música, segundo Kleber, é uma pequena cilada do roteiro: a banda é inglesa, não americana. Do Equador para cima, tudo a mesma coisa.
Alegoria, alegoria
Resistência é uma palavra que parece carimbada na obra de Kleber e Juliano. Em Aquarius, a personagem Clara resiste em seus princípios. Bacurau é toda ela um bastião de perseverança. A sugestão de que a história do longa é uma alegoria do Brasil atual não desperta entusiasmo nos diretores. “Eu nunca escrevi crítica ou fiz filme com a intenção de direcionar ninguém. Bacurau é uma história cheia de complexidade, é isso que me interessa”, disse Kleber durante a coletiva.
Sônia Braga, em sua segunda parceria com a dupla, embarca em uma análise social a partir dos filmes que realizou com Kleber e Juliano. “O sentimento de união e de resistência é universal, não está só no Brasil. Quando chegamos com Aquarius, encontramos um país todo dividido. Aquarius estava em um dos lados dessa sociedade dividida. Minha intuição é que Bacurau está no futuro e a minha esperança é de que ele mostre um novo futuro”, comentou a atriz.
Ela prosseguiu na reflexão. “Todo mundo quer as mesmas coisas: que todos possam fazer três refeições por dia, ir à escola, ter saúde. Eu acredito na arte como forma de abrir a discussão. Nós precisamos voltar a conversar e encontrar o caminho. E rápido, porque senão esse mundo que nós temos vai acabar”, profetiza a intérprete da médica Domingas, personagem que ela dedicou à vareadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018. “Eu quero saber quem mandou matar Marielle”, afirmou Sônia.
Silvero Pereira, o Lunga de Bacurau, embarcou na defesa da arte incitada por Sônia. “Nós não podemos culpar a arte pelo que acontece no mundo. Os artistas são trabalhadores, e não se trata trabalhador a paulada. Nossa função é fazer pensar”, comentou. Wilson Rabelo, o professor Plínio, fez eco às palavras dos colegas de elenco. “Uma das maiores armas da população de Bacurau é a identidade, algo que falta para o Brasil, cujo povo é seguidamente atacado na sua autoestima”, pontuou o ator.
Às armas, cidadãos
Se Bacurau é um faroeste, a presença de um grande confronto final seria óbvia. E ele se dá com uma enorme carga de simbologias brasileiras, nordestinas, sertanejas. O faroeste de Kleber e Juliano é o cangaço redivivo. “Bacurau é um lugar pacífico. Ali, as armas são peças de museu”, apontou Kleber.
A placa, no início do filme, confirma a constatação, dizendo “se for, vá na paz”. Silvero prossegue no mote do diretor. “O filme propõe várias reflexões. Quais são as nossas verdadeiras armas? Que revolta nos faz lutar? Nós podemos lutar pelo amor, dando as mãos. Ou com armas, quando não nos entendem”, provocou Silvero.
O Brasil de Bacurau é um país “daqui alguns anos”. Nesse tempo, a violência de estado parece institucionalizada. Uma transmissão de TV exibe um evento bárbaro. A notícia como show. Um futuro distópico? Juliano embaralha as cartas do tempo. “Para mim, Bacurau é o nosso passado.”