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Ano 02, Filme 02 The Winner Is...

Spoiler alert: Amadeus é um dos meus vencedores do Oscar favoritos de todos os tempos – possivelmente, o favorito. Quando penso nos grandes filmes lançados no ano em que nasci (1984), ele é o primeiro que me vem à mente. Então, o texto a seguir é mais uma grande declaração de amor do que qualquer outra coisa. Prossiga por sua conta e risco.

O motivo para tamanha babação de ovo é que o longa do cineasta Milos Forman, vencedor de oito Oscars em 1985, é uma das melhores obras já feitas sobre a grandeza e o poder inatingível (e quase inexplicável) da arte. É sobre como arte não é sucesso, não é dinheiro, não é popularidade ou reconhecimento. É sobre como... se Deus realmente existe, arte é a única linguagem humanamente compreensível capaz de expressá-lo em forma terrena.

E a plena consciência disso é a grande maldição do protagonista Antonio Salieri (F. Murray Abraham): o maestro é o homem que Ama-Deus, mas o canal que seu adorado Senhor escolhe para manifestar sua grandeza é a (Moz)art(e). À primeira vista, podem parecer trocadilhos bobos, mas nenhum deles é por acaso ou passa despercebido ao roteiro de Peter Shaffer (adaptando sua própria peça). Ao opor Salieri e Mozart (Tom Hulce), a dramaturgia de Amadeus é toda alicerçada numa contraposição entre o terreno e o divino – e sua grande ironia é que, por mais que o primeiro seja o grande devoto, é o segundo, um tanto glutão, debochado e devasso, que chega mais perto de uma ideia de divindade.

Essa oposição entre os dois protagonistas é a grande sacada do filme. Dizer que Mozart é genial seria óbvio. Agora, dizer que Mozart é genial e que o único homem capaz de compreender isso é totalmente consumido pela inveja é conflito. É drama. É cinema – algo que grande parte das cinebiografias de artistas ainda não compreendeu até hoje.

Salieri (que, é bom ressaltar, realmente existiu) é um dos recursos ficcionais mais eficazes já usados em um roteiro: ele é, acima de tudo, um ponto de vista, que permite ao espectador mais leigo, que não entende uma linha de música clássica, compreender a grandeza de Mozart. Na sua admiração – e, especialmente, no seu ressentimento – o filme traduz na tela a perfeição e a sublime revolução das notas do maior compositor de todos os tempos.

Veja a cena em que a esposa do rival, Constanze Mozart (Elizabeth Berridge), leva a ele as obras inéditas do marido: Salieri vê as partituras, a música toca à medida que ele as lê, o rosto do maestro reage em silêncio, o público entende tudo que precisa sobre o quão sublimes elas são. E a competência com que F. Murray Abraham transforma esse leitor, essa ferramenta narrativa, em um ser humano consumido por amor, inveja, êxtase, respeito, ressentimento e ódio, por quem nos importamos e de quem sentimos certa pena porque compreendemos sua dor, é o motivo pelo qual ele venceu seu (igualmente genial) colega de cena, Tom Hulce, na categoria de melhor ator. Não por acaso, nas cenas com o padre (Richard Frank), Salieri fala diretamente para a câmera porque não conversa com o sacerdote, mas sim com o público – num resquício claro das origens teatrais do material.

Amadeus constrói todo seu argumento sobre a natureza divina da obra de Mozart na justaposição entre esses dois protagonistas – entre ordem e caos, regras e revolução – que, não por acaso, ecoa o duelo entre a enfermeira Ratched e o R.P. McMurphy de Um Estranho no Ninho, outra obra-prima de Forman. Desde o início, Salieri é inveja, vaidade, soberba, a mediocridade convencional do status quo. Mozart é genialidade, amor, subversão. O primeiro é a prova de como quase todo mundo pode aprender a técnica, saber as regras, colorir dentro das linhas. Mozart é o artista, alguém que inventa novas linhas. Que entende que arte (ou a Grande Arte) incomoda, provoca, reinventa, desequilibra – algo que fica claro em todas as sofridas e exaustivas sequências de “pitching” de suas óperas para os membros do “conselho real de música” austríaco, especialmente quando ele defende “O Casamento de Fígaro”. Nesta cena, Forman (auxiliado por Hulce) mostra como a arte é a materialização daquele momento efêmero da mais pura e intensa paixão que só se sente por um instante e se perde para sempre. O grande artista é aquele capaz de capturar isso em algo eterno.

Esse contraste entre os dois personagens fica claro ainda nas escolhas opostas de atuação de Abraham e Hulce (um mais introspectivo, o outro quase farsesco), e nos figurinos oscarizados de Theodor Pistek. Salieri veste sempre cores escuras, sóbrias, contidas, variando entre preto e marrom; já Mozart abusa de cores claras e por vezes extravagantes, refletindo sua personalidade maior que o mundo. Amadeus, por sinal, é um filme de MUITOS: muito cenário, muito design de produção, muitas comidas, muitos figurinos, muitos adereços. E, além disso, é um longa que transita imperceptivelmente entre a farsa, a comédia, o drama, o musical e o operístico – com todos esses recursos e registros narrativos representando as “muitas notas” das composições revolucionárias de Mozart. Assim como nas obras imortais do mestre, todos esses elementos coexistem e são regidos em harmonia visando a um mesmo fim: o êxtase.

E é importante notar que, mesmo com toda essa devoção por seu objeto/sujeito de estudo, a produção de Forman nunca cai numa armadilha fácil. Ela entende que a obra de Mozart era perfeita. Mozart não era. O filme nunca tenta endeusá-lo ou ignorar suas falhas. Em vez disso, o roteiro de Shaffer e a realização do cineasta tcheco interpretam a ideia do “artista divino” como alguém, de certa forma, descolado do mundo. Na cena em que sua esposa e seu pai, Leopold (Roy Dotrice), brigam, fica claro como aquelas questões mundanas são quase alheias ao compositor. Mozart pertence a outra dimensão, só existe plenamente no plano da criação. Ele não é deste mundo porque o mundano lhe é opressor – e a consequência amargamente irônica disso será a indignidade trágica de sua morte e de seu enterro numa vala comum. Sua genialidade – indiscutivelmente arrogante – era seu maior trunfo e seu maior problema.

Ainda assim, Amadeus é um filme que quer redimir essa indignidade. E faz isso, novamente, com a ajuda de Salieri. Na cena final dos dois, quando o antagonista tenta ajudar o mestre a completar seu Requiem, ambos estão iluminados por velas, igualmente distribuídas em castiçais idênticos. Mas só Mozart está claro, iluminado. Salieri permanece no escuro.

Esta é a cena, por sinal, que toda cinebiografia artística tenta fazer: captar o momento exato da criação, traduzir na tela a genialidade inefável da inspiração de uma obra-prima (que o digam algumas das cenas mais vergonhosas e forçadas do tenebroso Bohemian Rhapsody). E o mais curioso é que ela não é exatamente uma sequência de criação – como o roteiro deixa bem claro antes, a música já foi toda feita na mente de Mozart, eles só estão ali “escrevendo, rascunhando, rabiscando, o de menos”, nas palavras do protagonista. A cena só funciona porque Salieri está ali, re-expressando esse processo para nós, meros leigos mortais. Perdoando e redimindo-nos por nossa mediocridade e indignidade diante de algo tão sublime. Salieri é Amadeus, essa ponte entre o divino e o terreno.

A Competição

Pelo texto acima, já dá para ter uma boa ideia se eu concordo ou não com a escolha da Academia em 1985. Ainda assim, a disputa do ano era bem forte. A produção de Milos Forman desbancou a pungência social de A História de um Soldado, de Norman Jewison, e Os Gritos do Silêncio, de Roland Joffé, e o espetáculo visual de Passagem para Índia, de David Lean.

Mais de 30 anos depois, este último é o que mais se aproxima da presença e influência cultural de Amadeus. Por maior que tenha sido sua aclamação, porém, Passagem já era visto naquela época como uma produção um pouco aquém das obras-primas Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai – que já haviam rendido dois Oscars a seu diretor. E assim como Lean, Jewison é outro que havia vencido a estatueta por um longa de temática semelhante a Soldado – com No Calor da Noite, em 1967.

Não que já ter sido premiado antes possa ser considerado um critério de desempate em 1985: Forman também já havia levado o grand slam da Academia, em 1976, com Um Estranho no Ninho. No caso dele, no entanto, os dois filmes estão num mesmo patamar de excelência – provavelmente representando o auge, merecidamente reconhecido, de um dos grandes diretores da história do cinema.

 

Onde assistir: O DVD e o blu-ray de Amadeus se encontram esgotados, mas o filme está no catálogo do NET Now.

 

20/11/2019

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Sobre o autor:

Daniel Oliveira é crítico de cinema desde 2004. Foi freelancer para veículos como Folha de S. Paulo e, entre 2012 e 2018, foi repórter e crítico do jornal O Tempo. É formado em Comunicação Social pela UFMG, com especialização em História da Cultura e da Arte, e pós em Roteiro para Cinema e TV, pelo Humber Institute, de Toronto. No Canadá, trabalhou como leitor e analista de roteiros. Criou o site Pílula Pop e foi seu editor de 2004 a 2011. É mestrando em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, e membro da Abraccine.
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