Aspirantes, de Ives Rosenfeld, conta a história de Júnior (Ariclenes Barroso), um jovem que tem o sonho de ser jogador de futebol profissional e atua em um pequeno clube de Saquarema, cidade litorânea do estado do Rio de Janeiro. Mas, além de não ser tão talentoso quanto o colega Bento (Sérgio Malheiros) e se ressentir disso, Júnior também tem que lidar com a gravidez da namorada, com a falta de dinheiro e com o sentimento crescente de frustração.
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O filme foi um dos grandes destaques do Festival do Rio de 2015 (ganhou Melhor Ator, Melhor Diretor e Melhor Atriz Coadjuvante), mas só fez sua estreia nacional no fim de 2019. O diretor Ives Rosenfeld, que também escreveu o roteiro com Pedro Freire, falou com exclusividade para o Cinema em Cena.
Cinema em Cena - Qual o ponto de partida para fazer esse filme. Por que um filme sobre futebol, e com esse recorte específico?
Ives Rosenfeld - Eu sou apaixonado por futebol, acho que o filme começa desse desejo de filmar futebol, o universo do futebol, o Pedro Faerstein, que é o fotógrafo do filme, é meu amigo de faculdade e é outro apaixonado por futebol. A gente trabalhou juntos várias vezes, porque eu fui técnico de produção por muito tempo e, nos sets de filmagem, constantemente falávamos desse desejo de filmar futebol, então o filme surge dessa vontade. Só que, quando eu comecei a escrever o roteiro para pensar em qual história eu queria contar, eu percebi que eu não queria contar a história dos vencedores, porque está muito contada a história dos meninos que ganham milhões, conquistam fama e são filmados pela mídia. Eu queria contar a história dos meninos que não chegam nessa profissionalização, que é uma grande maioria e que se torna invisível, quem acompanha futebol não sabe que são muito mais meninos que não chegam à profissionalização do que os que se profissionalizam.
Ariclenes Barroso (Júnior) e Sérgio Malheiros (Bento)
Cinema em Cena – Você muitas vezes opta por planos muito longos e cenas com movimento de câmera, lembrando um pouco o cinema de Mizoguchi. Queria que você falasse um pouco de por que essa opção, por que essa estética.
Ives Rosenfeld – Eu venho do som, por isso eu tinha o desejo de trabalhar um som criativo no filme. Eu entendia que os diálogos ofuscavam muito o desenho de som no filme, quer dizer, a fala se sobrepõe a qualquer coisa na banda sonora de um filme, então tem os silêncios que vêm do próprio personagem, mas vinham de um desejo anterior ao roteiro, porque era para poder dar espaço para a construção desse desenho de som e a gente encontrou esse personagem na estrutura do roteiro que é silencioso e achávamos que a permanência dele em cena em silêncio gerava essa angústia. Então, a dilatação do tempo era para se observar, se cansar e se entediar desse personagem. Acho que, não conscientemente, tem uma influência do cinema oriental nesta construção do filme, do esgarçamento do tempo, desses longos planos, com a câmera se movimentando, mas bem devagar na maioria das vezes. Acho que, de certa forma, foi o cinema que me formou, a minha geração de realizadores é muito atravessada por esse cinema quando ele finalmente chega no Ocidente, então acho que isso está no filme também, ainda que não conscientemente, acaba passando pela decupagem do filme.
Cinema em Cena – Em compensação, em outros momentos, principalmente nas cenas do campo, ele tem outra estética, que me lembra o Canal 100. Não sei se foi uma referência...
Ives Rosenfeld – Totalmente. Não tem como filmar futebol no Brasil e não passar em Canal 100. Nas partidas de futebol, por exemplo, essa era uma parte que a gente tinha muita preocupação, porque víamos ficções, sobretudo mais antigas, que filmavam futebol e sempre achava falso aquela filmagem de futebol e uma coisa que a gente se deu conta é que sempre que a câmera entrava no campo a gente saía do jogo. Estamos muito habituados com futebol e a câmera nunca entra no campo, então no filme a gente falou “”vamos seguir isso”, essa orientação, a câmera fora do campo. Então, na partida de futebol, a gente montou dois times, colocou os meninos para jogar e posicionou as câmeras como se fosse um broadcast de futebol: pôs câmeras fora do campo e ficou filmando, claro que eventualmente a gente pedia para jogar a bola para um lado ou para o outro, eventualmente o outro time era melhor do que o nosso (risos) e começava a dominar mais o jogo, eu ia aos poucos expulsando os jogadores do outro time para manter a bola mais com a gente (risos).
Cinema em Cena – Esse outro time era um time de meninos jogadores mesmo ou eram atores?
Ives Rosenfeld – Para a gente montar o nosso time fictício, a gente contou com atores não profissionais, meninos que eram aspirantes a jogadores de futebol de fato, que moravam lá em Saquarema e a gente fez uma peneira mesmo, espalhamos pela cidade uma convocação para esse teste, que era uma peneira, e aí alugamos um campinho de futebol e botamos os meninos para jogar. Aí ficávamos eu e o Leo Rocha, que é meu assistente de direção, outro apaixonado por futebol, olhando e falando “esse aí é bom de bola”, “esse aí tem um perfil ótimo para jogador”, ficávamos anotando os nomes e aí a gente chamou alguns desses jogadores para o nosso time fictício e os demais jogadores a gente usou para compor os outros times.
Cinema em Cena – Em termos de lente, tem uma diferença muito grande o que você usou nesse momento de campo e o que você usou no resto do filme, para dar mais esse efeito de futebol televisionado?
Ives Rosenfeld – Essas cenas do futebol foram filmadas com três câmeras (o filme foi filmado com uma câmera só, mas especificamente essas partes foram filmadas com três câmeras), como a gente está fora do campo, temos que usar lentes mais teladas, teleobjetivas que aproximem mais a imagem, então usamos lentes bem fechadas que a gente tinha e a gente faz uso de câmera lenta também nessas partidas de futebol, a gente também consegue ver melhor essa movimentação mas dá também uma suspensão da realidade essa câmera lenta, tirando um pouco esse naturalismo que a gente tem nas outras cenas do filme.
Ariclenes Barroso: prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio
Cinema em Cena – Você já tangenciou um pouco esse assunto do Júnior ser esse cara meio ensimesmado. Como foi a composição e o trabalho com o ator para chegar a esse personagem que é quase um ator de cinema mudo?
Ives Rosenfeld – No roteiro, a gente já tinha um pouco (antes mesmo de encontrar o Ariclenes Barroso), a construção desse personagem que acumula, acumula e explode. Uma coisa que eu nem consegui perceber ao longo da produção, mas depois eu percebi: eu tenho um curta de 2008 em que o personagem é muito parecido. É completamente diferente, é um funcionário público, mas que também vai acumulando, acumulando e explode em algum momento. Eu me dei conta que, de certa forma, é um assunto que me interessa. E veio do trabalho com o Ari também. Acho que a própria escolha pelo Ari já parte de o personagem ser muito silencioso, porque o Ari é muito doce, tem uma expressão que até o maxilar dele já desenha e eu acho que isso ajudou muito na composição do personagem.
Cinema em Cena – A câmera, progressivamente, vai se aproximando dele, até chegar em sequências nas quais os outros personagens estão totalmente fora de foco. Qual era a intenção?
Ives Rosenfeld – Esse é um conceito estético que atravessa o filme todo. O que me interessa no filme é olhar para o Júnior. Nas partidas de futebol, por exemplo, eu não estou vendo a jogada, eu estou vendo o Júnior. Às vezes, eu não estou vendo sequer a bola, ele está jogando, mas eu não estou vendo a bola, no gol final a gente não vê a bola, só o chute. Tanto nisso quanto nas outras cenas. A ideia era sempre pensar como ele está reagindo às pessoas que estão falando, às coisas que elas estão falando e interessam a ele. E também, ao longo do filme, a gente vai fechando mesmo a câmera: a primeira partida de futebol é mais aberta do que a última, a gente vai reduzindo também o campo à medida que a gente vai entrando na cabeça do Júnior.
Cinema em Cena – Em termos de som, você trabalhou muito os sons ambientes, com muitas cenas sem trilha sonora. Por que essa opção por um som mais orgânico?
Ives Rosenfeld – Eu acho que ele é quase hipernaturalista, porque a gente levanta os volumes um pouco também. Achei curioso que, numa entrevista, me perguntaram sobre um bem-te-vi numa cena, eu falei “gente, eu não sei nem de que bem-te-vi você está falando”. Chama a atenção porque, como é tão silencioso, quando a gente levanta alguns ruídos, alguns sons, eu acho que eles saltam mais. Então acho que não é exatamente naturalista, mas como tem esse silêncio, acho que a gente consegue construir dinâmicas nesse silêncio. A gente está ouvindo o que o Júnior está ouvindo, entrando na cabeça dele.
Cinema em Cena – Aspirantes tem sido habitualmente descrito como “um filme sobre a inveja”. Você concorda com isso?
Ives Rosenfeld – Acho que, sem dúvida, era um dos assuntos do filme. Acho difícil falar que é um filme sobre a inveja, assim como acho difícil falar que é um filme sobre futebol. É difícil enquadrar em alguns rótulos, mas a inveja, sem dúvida nenhuma, está atravessando o filme. O Júnior é tomado por inveja também.
Cinema em Cena – Queria falar um pouco sobre a relação do Júnior com a Karine (Julia Bernat) e a gravidez dela. Como você conseguiu expor a situação, sem fazer um julgamento dela?
Ives Rosenfeld – Acho muito lindo colocar uma lente de aumento sobre as pessoas e tentar olhar com carinho. Eu tinha uma preocupação muito grande em olhar com carinho para os meus personagens. Eu estou filmando essas pessoas porque eu gosto delas. Mas eu tenho interesse nas pessoas de maneira geral, eu costumo dizer que o cinema é a minha intermediação com o mundo, é a forma de eu pegar uma lente de aumento para tentar entender uma determinada situação. E eu acho que os personagens têm muitas camadas, é difícil e injusto a gente julgar por atitudes um personagem. A ideia era essa, eles são recortes, são jovens, as atitudes dele são, por essência, irresponsáveis. Não dá para julgar a irresponsabilidade deles. Todos nós já fomos jovens e irresponsáveis.
Cinema em Cena – Como é para você, como homem, tratar do tema gravidez?
Ives Rosenfeld – Na época em que filmamos, eu ainda não era pai, mas eu tinha muitas amigas já vivenciando a maternidade de uma forma muito consciente de que mãe também é mulher, tem vontade sobre o próprio corpo. Eu sou de uma geração que já vivenciou o empoderamento das mulheres próximas também no aspecto da maternidade. Na equipe, estávamos cercados de mulheres que também já eram mães, como Ana Paula (diretora de arte), a Karine Teles (Sandra), que já era mãe na época, a Karen Akerman (montadora) também, então, acho que a gente vai conversando, vai sendo sensível a isso também. E acho que no personagem da Karine tem esse empoderamento também, no sentido de “sou mulher, eu quero viver a minha vida, eu não vou ser impedida por uma gestação”.
Cinema em Cena – Esse filme foi feito com recurso de edital?
Ives Rosenfeld – Foi. Tivemos Lei do ISS e Fundo Setorial e para finalizar a gente teve o Edital de Finalização da Riofilme
Cinema em Cena – E, no momento atual, como você enxerga o cinema brasileiro e suas perspectivas?
Ives Rosenfeld – Infelizmente, as perspectivas são as piores. Estamos num governo que asfixia qualquer produção artística, que elegeu os artistas como seus inimigos (e talvez sejamos mesmo), e eu acho que a gente tem que seguir produzindo para marcar nossa resistência também. Sem dúvida, vai ser muito mais difícil produzir, e a gente vai ter que entender que tipo de cinema poderemos produzir, a produção não vai ser paralisada como foi em 1989, porque os equipamentos e as formas de produzir um filme foram democratizadas, os equipamentos permitem você fazer com uma câmera e montar na sua casa, então vamos continuar fazendo filme. Vamos ter que encontrar que tipo de filme vamos conseguir fazer, mas a gente não só precisa como deve seguir fazendo.