Para não dizer que não falamos de flores coisas que precisam ser discutidas, chegamos, no final do segundo ano, a um marco importante desta coluna: a primeira vitória de uma mulher em um dos festivais/premiações analisados. E dada a (infeliz) raridade disso, acho que vocês não precisam nem de três chances para adivinhar quem saiu de Veneza com o Leão de Ouro em 1985.
Os Renegados rendeu à genial (e já saudosa) Agnès Varda seu único prêmio principal num dos três grandes festivais de cinema europeus. O filme é um misto de estudo de personagem com road movie, que começa com a descoberta do cadáver congelado de uma jovem no meio de uma plantação. A partir dessa sequência inicial, e do péssimo trabalho policial que ela apresenta, a cineasta busca desvendar como o corpo de Mona (a excelente Sandrine Bonnaire), a “sem teto nem lei” do título original, chegou até ali, reconstituindo os últimos seis meses de sua vida a partir de depoimentos de pessoas com quem ela interagiu.
Essa premissa já deixa claro como o longa é uma espécie de Cidadão Kane feminino pós-beatnik, com uma estrutura que mistura o clássico de Orson Welles com o estilo semidocumental que definiu a filmografia de Varda. Mas por mais que a tradução em português do título tente masculinizar um filme que é, do início ao fim, essencialmente sobre uma mulher, Os Renegados não deve sua maestria a nenhuma referência ou influência masculina. Se a injustiça de que essa tenha sido a única vitória da cineasta francesa em um grande festival é inegável, pelo menos ela veio com uma obra que exemplifica o que de mais único e incomparável o cinema da realizadora tinha a oferecer. Assim como os maiores clássicos de Varda, de Cléo das 5 às 7 a Visages, Villages, Os Renegados é um longa sobre paisagens humanas.
Por mais que a produção se pergunte o tempo todo quem é Mona (ou quem ela foi), a diretora deixa sempre um espaço entre a protagonista e a câmera para que o espectador possa chegar às suas próprias respostas e conclusões, sem que elas sejam impostas e ditadas pelo filme. A jovem é claramente um subproduto tardio da geração beatnik, atravessando a França durante o inverno e acampando sozinha em condições precárias, sem saber o que vai comer ou onde vai dormir no dia seguinte. Mona é uma mulher da vida, mas no sentido de que escolheu uma vida difícil – e gosta de vivê-la. É uma mulher de inverno, que veste quem ela é: um casaco de couro gasto, um par de botas prestes a se desmanchar, um cabelo nunca lavado.
Perto do fim de Renegados, um cafetão-traficante que tenta se aproveitar dela diz que a protagonista deveria “posar” para fotos; ela não ouve direito e faz um trocadilho com “pausar”. Posar/pausar para Mona é morrer: ela é movimento. Nas suas próprias palavras, “eu não me importo, eu movo”. Mais do que todos esses detalhes, porém, Varda sugere sutil e visualmente quem Mona é em várias imagens para as quais a câmera do diretor de fotografia Patrick Blossier deriva ao final de alguns dos vários planos-sequência do filme: uma placa de trânsito dobrada ao meio, um trator enferrujado, caixas velhas de supermercados jogadas fora. A protagonista é o efeito colateral, o resíduo recusado, de um sistema em frangalhos. E meio topetuda, imperfeita e intempestiva, ela se recusa a ser uma engrenagem desse sistema.
Essa ideia de paisagens humanas em Renegados, contudo, não diz respeito somente a Mona – envolvendo especialmente as pessoas com quem ela encontra em seu caminho. O casal de pastores (Sylvain e Sabine) que tenta convencer a protagonista a juntar-se a eles é como seu rebanho: pacato, domesticado. A professora que lhe dá carona (Macha Méril) e sonha em resgatá-la é como seus técnicos acadêmicos, tentando salvar árvores condenadas por uma história violenta. A velha Lydie (Marthe Jarnias), com quem Mona bebe conhaque, é como sua casa: cheia de coisas, móveis, acúmulos e memórias, sem mais espaço para nada.
São esses lugares-como-pessoas-como-imagens-como-pessoas que realmente interessam a Varda. É o mundo enxergado pelo prisma de sua sensibilidade e pela fotografia de Bossier, que resulta em planos lindíssimos, essencialmente vardianos, como a imagem inicial que lembra um quadro pictórico do paisagismo holandês, quase um Van Gogh, até que a câmera derive e revele a verdade do elemento humano ali. Poucos realizadores, ou nenhum, filmou e enxergou o mundo como Agnès Varda.
Não por acaso, próximo ao fim do filme, a casa em ruínas será uma das últimas paradas da protagonista, como uma paisagem-representação de seu corpo cedendo à exaustão da vida na estrada. É um final triste, desesperançado, anunciado já na cena inicial e antecipado o tempo todo pela trilha musical melancólica e agourenta de Joanna Bruzdowicz. Na jornada de Mona, a cineasta parece refletir sobre como toda mulher atravessa o mundo, essencialmente, sozinha – o que fica claro já na primeira cidade em que ela para, onde todos os olhares dirigidos à personagem, com exceção do da câmera de Varda, são de desejo (sexual) masculino.
Ao rejeitar essa objetificação (sexual, econômica) tão violenta da sociedade, a protagonista – nas palavras do pastor Sylvain – escolhe “liberdade total, mas recebe solidão total”. E de fato, em todo o filme, o único personagem que parece realmente enxergar e se conectar com Mona é o imigrante tunisiano (Yahiaoui Assouna) – um outsider, forasteiro como ela – que acaba tendo que expulsá-la de sua casa.
Como resultado, Sylvain afirma que a jovem “não está vagando, está murchando”. E, em certa medida, Renegados reflete um pouco sobre o fracasso, já nos altos de 1985, do projeto hippie / flower power. Curiosamente, o longa dialoga um pouco com o (mais recente) Na Natureza Selvagem, ao retratar uma jovem na estrada, sem rumo, em busca de um projeto diferente de sociedade. Se o filme de Sean Penn terminava afirmando que “felicidade só quando compartilhada”, Varda parece acreditar que sua Mona morre porque está sozinha. Talvez tivesse sobrevivido se houvesse mais alguém ali. Se felicidade só existe compartilhada, a miséria é essencialmente solitária.
P.S.: Os Renegados foi eleito o 13º melhor filme dirigido por uma mulher na lista que a BBC divulgou na semana passada. Varda, por sinal, foi a diretora com mais filmes na lista, seis no total.
A Competição
Porque merece ser repetido (seguido daquele gif de Shame! Shame! Shame! de Game of Thrones): o Leão de Ouro por Os Renegados foi o único prêmio principal vencido por Agnès Varda no grand slam dos festivais de cinema. Antes dele, a francesa havia recebido o Grande Prêmio do Júri em Berlim por As Duas Faces da Felicidade, em 1965. E só. Cannes, curiosamente, nunca reconheceu sua conterrânea.
Para levar a melhor em Veneza em 1985, Varda bateu pesos pesados como John Huston (A Honra do Poderoso Prizzi), Ridley Scott (com o fraco A Lenda), Manoel de Oliveira (O Sapato de Cetim), Maurice Pialat (Polícia) e Fernando Solanas, que ficou com o Grande Prêmio do Júri por Tangos – O Exílio de Gardel. Gérard Depardieu recebeu a Copa Volpi de ator por Polícia, mas o mais curioso envolveu o prêmio de atriz.
O júri decidiu não concedê-lo, considerando que Sandrine Bonnaire e Jane Birkin, as duas melhores performances do festival, já haviam sido laureadas junto com seus longas. Birkin protagonizou Dust, adaptação do romance No Coração desta Terra de J. M. Coetzee dirigida pela também francesa Marion Hänsel – a única outra mulher em competição com Varda, que levou o prêmio de melhor filme estreante. Pontos para o júri presidido por Krzystof Zanussi (vencedor do Leão de Ouro no ano anterior por O Ano do Sol Tranquilo) por reconhecer as duas. Ironicamente, dez anos depois, em 1995, Bonnaire retornaria ao Lido para ganhar seu merecido prêmio de melhor atriz, desta vez por Mulheres Diabólicas, dividido com a instituição Isabelle Huppert.
21/12/2019
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