Amigos do Cinema em Cena,
hoje, 14 de Outubro de 2020, o site completa 23 anos de existência. E é com um orgulho tremendo (e um nó na garganta) que apresento a vocês, neste aniversário, uma coluna nova, Em Fases, que foi criada e será mantida por um jovem chamado Luca Villaça. Ver meu filho publicando textos no site que criei bem antes de seu nascimento é, como devem imaginar, um momento particularmente emocionante para mim como criador do site... e do colunista. Aliás, discutimos bastante que tipo de assunto ele abordaria neste espaço até que ele decidisse trazer para o Cinema em Cena uma mídia que muitos teimam em não considerar como Arte, mas que, como verão já no texto que inagura esta coluna, é capaz de contar histórias profundas, psicolagicamente complexas e emocionantes.
Espero que curtam. Como dizemos aqui em Minas (ou pelo menos em minha família extremamente mineira): o moleque é bão.
Um grande abraço e bons... games.
Pablo
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#01 - Outer Wilds: Beleza e Melancolia no Espaço
por Luca Villaça
Há uma linda inocência na nossa insistência em olhar para as estrelas e sonhar.
A distância entre nosso pequeno planeta azul e os corpos celestes que admiramos é de uma imensidão que torna impossível que qualquer um de nós, vivos hoje, cheguemos a visitá-los, a explorar o que existe além de nosso sistema solar. Mas, como uma criança que não entende as limitações da existência, nós continuamos a olhar para cima, nos perguntando o que há lá fora, sonhando em descobrir.
Outer Wilds é, de certa forma, uma concretização desses devaneios.
Poucos minutos depois de uma civilização alienígena lançar seu quinto astronauta para o espaço, a estrela em torno da qual gira seu sistema solar explode, queimando toda a vida existente e obliterando todos os planetas. Mas, após ser consumido pelo sol, o astronauta acorda seguro em seu planeta natal e descobre que está preso em um misterioso loop temporal. Toda vez que morre, retorna aos momentos antes do lançamento de sua expedição espacial. E nós temos o privilégio de jogar como este astronauta.
O jogo nos presenteia com uma liberdade imensa; ele nunca nos diz qual é o objetivo de nossa expedição, de nossas viagens e aventuras. Temos completa escolha sobre quais mistérios, espalhados e escondidos de forma orgânica pelo sistema solar, desejaremos desvendar, o que iremos procurar, como iremos explorar. Desde seus primeiros momentos, já deixa claro que toda nossa experiência com o jogo está sob o nosso controle. Ele não ditará nem forçará nada. Até o ato de acordar, que abre a história, acontece quando nós escolhemos: “Aperte ‘E’ para acordar” aparece na tela, em meio à escuridão das quatro pálpebras fechadas de nosso protagonista alienígena.
E, assim que acordamos, nos deparamos com a beleza do design de Outer Wilds. O céu do Recanto Lenhoso, nosso planeta natal, se estende à nossa frente enquanto uma fogueira aconchegante murmura ao nosso lado. Planetas giram à nossa volta, estrelas brilham, meteoros se aproximam, se afastam, explodem. O sistema solar que o jogo nos entrega é extremamente vivo e detalhado; cada planeta, preso em sua eterna viagem em volta do sol, tem propriedades estéticas, sonoras e de jogabilidade próprias, únicas, e conceitos extremamente interessantes e criativos - como os Gêmeos da Ampulheta, dois planetas presos um ao outro por uma força gravitacional que, em um ciclo infinito, transmite toda a areia presente na superfície do “Gêmeo Cinzento” para o “Gêmeo Cálido”, soterrando-o, e depois, como uma ampulheta sendo virada, devolve toda essa areia para o “Gêmeo Cinzento”.
E o jogo não se satisfaz em apenas mostrar esses conceitos incríveis, esforçando-se para executá-los da melhor forma possível, usando o máximo de recursos para vender esses lugares ao jogador. O design de som de cada planeta é completamente diferente dos outros; em cada um, o vento soa diferente, o bater das suas botas contra o chão soa diferente, a atmosfera em si soa diferente. O Profundezas do Gigante, um planeta que consiste em um mar enorme, com algumas poucas e pequenas ilhas, e uma tempestade interminável e incontáveis ciclones devastadores, soa inquieto, instável, com trovões constantes, rugidos das ilhas sendo atingidas pela maré, vento forte batendo contra nosso capacete. Já o Vale Incerto, com sua superfície morta depois de milhões de anos sendo bombardeada por pedras flamejantes vindas da lua vulcânica que o orbita, soa quieto, vazio, abandonado. Uma corrente fraca de vento viaja constantemente à nossa volta. Nossos passos contra as rochas rachadas se destacam no silêncio (ocasionalmente interrompido por mais uma pedra flamejante explodindo na distância). E o mais interessante é que a sensação experimentada explorando ambos os planetas é similar: desconforto, insegurança. Mas o clima ameaçador dAs Profundezas do Gigante é imponente, agressivo, enquanto o do Vale Incerto é sutil - algo refletido nas paletas de cores que regem ambos os planetas. O primeiro é dominado por tons de um verde químico; o segundo, por roxo escuro. As duas cores são, normalmente, relacionadas à morte. Mas o verde mortífero do Gigante é forte, claro, enquanto o roxo morto do Vale é tímido, escuro, antigo, abandonado.
Cada um dos planetas é concebido com esse mesmo nível de cuidado e sutileza, que intensifica o que o jogo deseja que nós sintamos quando aterrissamos nossa nave, quer seja terror enquanto desviamos dos espinhos escondidos na neblina turva do Abrolho Sombrio, ou segurança enquanto conversamos com as outras criaturas da nossa espécie, com os outros lenhosos, em nossa vila, nossa casa, nosso planeta (cujo design é o mais parecido com a Terra, facilitando que sintamos pertencer àquele lugar e, como consequência, fazendo com que os outros ambientes do jogo e as estruturas criadas pela outra espécie inteligente que já habitou o sistema solar, os Nomai, pareçam mais alienígenas ainda - mesmo que nós mesmos, na verdade, também sejamos alienígenas).
Por falar nos Nomai, quando nossa expedição é iniciada, estes já foram extintos há muito tempo e, assim, antes de sairmos do Recanto Lenhoso sabemos pouco sobre eles: de onde vieram, o que fizeram quando estiveram em nosso sistema solar, o que queriam fazer, para onde foram - perguntas que nossa espécie tenta responder há anos. Ao começarmos a explorar, os Nomai são apenas mais um mistério estelar feito de poeira celestial. Mas, ao longo das horas de investigação, analisando suas lindas estruturas arruinadas, lendo as conversas que deixaram impressas nas paredes de seus templos, traduzindo as gravações de seus cientistas, admirando suas pinturas, sua tecnologia, nós desenvolvemos carinho por aquele povo. Admiração, até. Entendemos que eram cuidadosos com os ecossistemas que visitavam, motivados pela curiosidade, regidos pelo pensamento lógico e impulsionados pelo carinho que sentiam por ciência, pela vida, uns pelos outros, pelas estrelas. Descobrimos seus romances, seus sonhos, desejos, paixões. Testemunhamos o orgulho que sentem um pelo outro, a felicidade que sentem ao verem suas crianças incorporando descobertas cientificas em suas brincadeiras.
O jogo faz com que nos apaixonemos pelos Nomai, transformando o sentimento que rege nossas investigações. O que antes era curiosidade inquietante se torna melancolia. A cada corpo que encontramos, esqueleto, projeto destruído, já não comemoramos mais por conseguir mais uma peça do quebra-cabeça que são os Nomai, mas lamentamos por eles não estarem mais ali, no nosso sistema solar.
Essa atmosfera de melancolia domina Outer Wilds, tornando-o uma experiência reflexiva e calma. Mesmo que seja um jogo difícil, com controles delicados e diversas formas de morrer (destruindo nossa nave e flutuando sem rumo pelo espaço até que não tenhamos mais ar. Caindo no Sol. Afogando no mar. Sendo devorados por um tamboril, eletrocutados por uma água viva brilhante...), a inevitabilidade da morte não permite que a experiência se torne frustrante. Afinal, a morte faz parte da narrativa. Mesmo que façamos tudo com cuidado, consigamos passar por todos os obstáculos, fugir de todas as ameaças, depois de pouco mais de vinte minutos, o Sol explodirá novamente e o loop temporal recomeçará. Falhar faz parte. Mesmo perdendo a vida, não perdemos o conhecimento que adquirimos - conhecimento sendo o verdadeiro inventário que Outer Wilds nos dá. Não naves, armas, ou habilidades novas, como outros jogos fariam. É através de nossas aventuras falhas que conseguimos avançar mais nas aventuras futuras. Uma ideia que é apresentada logo no início do jogo, quando um dos lenhosos afirma que o estilo de vida de nossa espécie vem de tentar e errar. E essa citação, a única exposição textual do principal tema do jogo, vem em uma conversa que é completamente opcional, antes de entrarmos em nossa nave pela primeira vez.
Inclusive, essa liberdade que o jogo nos dá de escolher completamente o que desejamos fazer é extremamente satisfatória. Jogadores pacientes que escolhem explorar tudo que podem são sempre presenteados com informações essenciais para o aproveitamento das mecânicas do jogo e o entendimento completo da história. Como logo no início da narrativa, quando, ao acordarmos do lado de uma fogueira, somos instruídos a pegar os códigos de lançamento de nossa nave no observatório da vila: jogadores impacientes, que querem chegar logo ao espaço, simplesmente correriam até o observatório e pegariam os códigos. Mas se você prestar atenção na vila, conversar com os lenhosos, encontrará o lindo e sutil prelúdio de Outer Wilds.
Aliás, quando caminhamos pela vila escutamos a primeira música da trilha sonora do jogo, uma composição simples e leve, tocada apenas em um banjo, que será sempre associada ao nosso planeta natal. Com cada interação que temos com os outros lenhosos, aprendemos um pouco mais sobre o universo do jogo: entendemos a funcionalidade de nossos equipamentos (tendo a oportunidade de testar cada elemento destes), aprendemos sobre a história de nosso programa espacial, descobrimos um pouco sobre cada um dos astronautas que estão espalhados pelo nosso sistema solar, descobrimos que cada um deles tem um instrumento musical que tocam com frequência e que, com isso, poderemos encontrá-los se seguirmos a música.
Ao entramos no museu da vila, logo abaixo do observatório, um canto calmo e similar ao de baleias se mistura ao banjo na trilha. Este canto vem para representar nossa exploração espacial, relacionando-a às aventuras marinhas da humanidade. No museu, descobrimos sobre a inevitabilidade de nosso Sol se tornar uma supernova, sobre as pedras misteriosas que emitem frequências quânticas que estão espalhadas pelos planetas, sobre os seres vivos que ameaçam a nossa vida lá fora e sobre os Nomai. Ao lidarmos com os Nomai e as ruínas que deixaram para trás, um piano lento e solitário invade a trilha, direcionando-a para um tom triste. Finalmente, quando deixamos o Recanto Lenhoso pela primeira vez e o vemos ficando cada vez mais distante de nossa nave, o canto de baleia se torna mais proeminente, enquanto o banjo se torna mais baixo, distante, tímido, sinalizando nosso afastamento de casa, de nosso conforto e segurança.
E quando já estamos completamente sozinhos no vácuo escuro, cercados pelo cintilar das estralas, assistindo aos planetas dançarem em torno do Sol, somos apresentados ao último elemento sonoro importante do jogo: o som que nos acompanhará em nossas viagens e que representará o espaço.
O silêncio. Este é som de nossos sonhos estelares. E é dominado por ele que começamos nossa expedição.
14 de Outubro de 2020
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