É comum pensarmos que a Espanha sempre foi um país forte no audiovisual, afinal, sempre tivemos conhecimento das obras do Almodóvar e a exportação de artistas como Penélope Cruz e Javier Bardem.
Apesar de constituir uma excelente nata cinematográfica, em termos de mercado audiovisual a Espanha vem se solidificando somente nos últimos anos. Parte do sucesso atual do país se deve aos investimentos realizados pelas plataformas de streaming. Como não citar alguma obra espanhola entre os serviços?
Entretanto, longe de ser uma decisão por parte dos conglomerados, o renascimento da cinematografia espanhola se deve pelo esforço do governo do país. Liderado por Pedro Sánchez, políticas públicas passaram a ser implementadas para o setor da economia criativa.
Entre as mudanças mais notáveis desde que o partido socialista assumiu o país, está o desenvolvimento contínuo das políticas de Film Commissions, responsáveis pela atração de filmagens nacionais e internacionais em locais estratégicos para o desenvolvimento econômico da região, bem como a aprovação da regulamentação do streaming pelo parlamento europeu.
Desde 2018, o parlamento europeu se dedica a fiscalizar os países do bloco para a implementação das próprias legislações regulatórias para esse novo modelo do audiovisual. Como consequência, a Espanha se dedicou a ser protagonista nesta empreitada e vem colhendo frutos desde então.
Abraçando uma cota de tela de 30% dentro das plataformas, a Espanha passou a ser um polo de produção bastante rentável para as grandes empresas internacionais, especialmente a Netflix. Isso fez com que no início de 2021 o país anunciasse um novo pacote de investimentos de mais de € 1 bilhão.
Entre as medidas do novo orçamento, o que mais chama a atenção é que parte do dinheiro está dedicada para a formação de novos profissionais, mirando principalmente o retorno de investimentos após a Covid-19.
O caso da Espanha é extremamente importante para analisarmos como as políticas públicas necessitam de tempo para amadurecer e gerar lucro constante. Com as modificações estratégicas para os investimentos em novas produções para o streaming, o país pôde sonhar em renovar sua Lei do Audiovisual.
Sem modificações profundas há quase 10 anos, o setor audiovisual, em concordância com as principais entidades governamentais, chegaram a um acordo de revitalização da legislação, que em partes vem trazendo uma modernidade pouco vista em outros países que são protagonistas na indústria criativa.
Duas grandes mudanças vem de encontro com o que chamo de diversidade em meu último texto por aqui. A primeira delas é a nova formulação da política de cota de tela, conhecida por ser uma legislação que reserva uma porcentagem de dias por ano para o cinema nacional em que está vigente.
Com a modificação, a Espanha passa a não exigir mais a reserva por dias, mas sim por salas. Ou seja, durante todo o ano, os cinemas da Espanha precisam estar com uma cota reservada para o lançamento dos nacionais e até mesmo coproduções com outros países iberoamericanos, o que pode até mesmo valorizar filmes brasileiros, uma vez que as parcerias sempre foram saudáveis.
Já a outra novidade está no fomento estatal para produções que tenham outros idiomas falados na Espanha, como é o caso do gallego. A medida já havia sido rechaçada pelas plataformas de streaming, porém, o governo, em comum acordo com o setor, decidiu implementar a norma diretamente na Lei do Audiovisual, fazendo com que parte dos 30% já reservados exibam as obras.
As duas novas medidas impulsionam bastante o setor independente, que, diga-se de passagem, sempre sustentou os mercados audiovisuais pelo mundo. As modificações também fizeram com que a legislação trouxesse oportunidades para diferentes autores, contemplando a diversidade também na formação das equipes como explico em meu fio no Twitter.
Com a valorização de seus profissionais, fica mais fácil identificar que as obras consagradas do Almodóvar não estão lá por uma opção única de diversidade da Netflix ou do Prime Video. É importante reconhecer que o trabalho das políticas públicas é essencial para a manutenção do audiovisual como um todo.
Neste caso, é possível também tomar a Espanha como um exemplo saudável e lucrativo a longo prazo para entender as possíveis modificações e implementações que o nosso próprio país precisa reconstruir para um próximo governo mais comprometido com a democracia e igualdade.
Enquanto isso não acontece, a Europa vai nos ensinando que o futuro do audiovisual também é um futuro sem barreiras impostas por grandes empresas, especialmente no que diz respeito ao tratamento dos autores e a sua remuneração.
Se Almodóvar hoje fosse brasileiro, seus direitos reservados em “Madres Paralelas” seriam todos da Netflix, fazendo com que o célebre diretor também não lucrasse com o retorno financeiro do filme. O debate do mercado auto regulador já é um mito aos europeus, que prezam cada vez mais pela valorização do trabalho.
De encontro com a revogação da reforma trabalhista no país, a Espanha também visa criar um Conselho Federal de Cinema, mais uma entidade governamental disposta a defender uma toda uma classe trabalhadora das péssimas investidas do liberalismo.
Imposições regulatórias estão longe de serem vistas como censura para a União Europeia, muito pelo contrário, elas impõem respeito, segurança e liberdade para criar e exibir o que seja necessário para ser visto. Os elogios por Almodóvar estar na Netflix precisam ser direcionados aos verdadeiros realizadores desta conquista: a boa e velha política pública cultural.