Indicar um filme russo justo quando há a invasão na Ucrânia pode parecer de mau gosto ou provocação barata, mas longe disso. É que o documentário O Fascismo de Todos os Dias (1965), de Mikhail Romm, só está disponível no Sesc Digital até o próximo dia 03/03 e é uma dessas obras pouco vistas que ao registrar um momento histórico tão importante consegue também ser tão atual. É um filme que fala sobre a ascensão do nazismo e fascismo, feito 20 anos após o fim da segunda guerra, e que comunica tão bem com o mundo de quase 60 anos depois.
O tema já foi explorado à exaustão pelo cinema, inclusive nove anos antes por uma obra-prima impressionante de Alain Resnais, Noite e Neblina (1956), mas as pouco mais de duas horas do filme de Romm trazem um tratamento incomum aos documentários “didáticos” do gênero, certamente inspirado pelo que Resnais realizou: quase todo de imagens de arquivo, com farto material produzido pelos próprios alemães durante o regime nazista, o cineasta impõe sua onipresente narração em off para expor os meios, o funcionamento e as consequências de uma ideologia de sedução e extermínio em massa.
Chama a atenção como o trabalho de montagem em conjunto com a narração às vezes despojada, às vezes jocosa, mas nunca sem perder a gravidade, subverte o que foi feito como propaganda nazista para virar denúncia. Reforça uma ideia de que o fascismo não se tratou de um evento maléfico isolado no tempo e que foi derrotado, mas de um processo longo, de cooptação de um povo tomado como massa, com estratégias diversas, e à espreita para uma nova ascensão.
Para quem espera por uma peça de propaganda soviética, o filme é surpreendente nisso, primeiro por uma autoconsciência do seu papel de documentarista, como um manipulador de material que escolhe o que e como mostrar; segundo porque a inevitável exaltação da vida em Moscou é retratada com o mesmo tipo de humanidade dada aos momentos dedicados aos alemães derrotados na revolução de 1919 e aos que se opuseram a Hitler e a adesão ao nazismo. Romm é muito claro em suas intenções, parece entender que muitas das imagens já falam por si e que é possível o choque de expô-las sem nenhuma chantagem ou exploração emocional. Há uma crença muito forte de que depende de um esforço coletivo para que isso não venha a acontecer de novo e no papel do cinema como instrumento de memória social. Uma obra indispensável para os dias de hoje.
O Fascismo de Todos os Dias está gratuito no Sesc Digital até 03 de março.
Noite e Neblina está disponível na MUBI Brasil.
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