“Não me incomodo. Rio Muito. A vida sem humor fica muito pesada.”
Presidenta Dilma Rousseff
Fiquei em dúvida de como apresentar a dica de hoje, pois confesso não saber exatamente a que público a coluna atinge. Os cinéfilos mais “experientes” certamente conhecem Věra Chytilová, mesmo que apenas de nome, como uma das mais importantes cineastas a surgir nos anos 60 na antiga Tchecoslováquia e seu As Pequenas Margaridas (1966) como um dos grandes marcos da década; os cinéfilos que desconhecem, mas sempre dispostos a desbravar o cinema, abertos a novas experiências, certamente precisam conhecer; e os que só procuram algo mais convencional, sem tempo ou paciência para “maluquices”... bom, são apenas 76 minutos de seu tempo, que tal coçar a cabeça com algo nunca antes visto? Corre até o risco de se tornar uma experiência divertida.
Sim, uma experiência divertida. Um filme político, feminista, transgressor e bastante incomum, que passa longe de palavras (e aqui não vai nenhum juízo de valor) como sério, sisudo, militante, difícil. Sua complexidade e profundidade passam inclusive pela aparente leveza e simplicidade na forma como a diretora constrói esta narrativa de duas jovens que, diante de um mundo depravado, decidem que só resta serem igualmente depravadas.
A bem da verdade, “construir uma narrativa” talvez não caiba aqui, pois destruição está no âmago da obra, e Chytilová faz da jornada de suas protagonistas uma espécie de aventura dadaísta em que tudo, e principalmente os homens, são motivo de deboche, à mercê de suas brincadeiras caóticas e muitas vezes infantis, e a própria linguagem cinematográfica parece estar sob o controle delas: a fotografia em preto e branco que a qualquer momento pode alternar para algum filtro colorido, o uso da montagem para transitar entre espaços diversos (e roupas também), e multiplicar sentidos, das imagens de bombardeios no início e fim do filme ao ritmo humorístico do todo e o próprio conceito de “picotagem” incorporado à obra, como em duas memoráveis sequências, uma em que usam tesouras para cortar objetos fálicos e outra em que cortam suas próprias cabeças. É um filme de liberdade godardiana, fortemente influenciado pelo cinema soviético mas também pela comédia americana de Chaplin, Buster Keaton ou Laurel & Hardy. Uso inusitado de objetos em cena e comportamentos inadequados e inesperados como instrumentos de humor.
Exceto que, ao contrário destes ícones do cinema americano, esta comédia amalucada, destrutiva e caótica é personificada por duas jovens mulheres, o que por si só já se torna um ato político, pois causa desconforto em especial no contexto histórico em que foi produzido. Marie I e Marie II (as personagens têm o mesmo nome) incomodam e atrapalham eventos após ficarem bêbadas, colecionam corações partidos de homens que não conseguem o que querem delas, riem bastante (um riso livre, “frouxo”, às vezes exagerado, às vezes inesperado) e comem bastante ao longo do filme, mas nunca seguindo os bons modos e costumes que ditam como (e quanto) comer. A sequência final é o ápice desse desconforto que causa naqueles que, como a cineasta faz questão de frisar, ficam indignados apenas com algumas saladas pisoteadas.
As Pequenas Margaridas está disponível na FILMICCA, assim como outros três longas e um curta-metragem de Věra Chytilová.
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