Sempre tive Ajuste Final (1990), de Joel e Ethan Coen, em alta conta, considerando um dos melhores trabalhos da dupla. Revendo tantos anos depois, talvez a empolgação não seja a mesma quando da descoberta na adolescência, mas me parece ter resistido ao tempo e ainda é uma muito prazerosa sessão em que um conflito entre gângsteres deverá ser administrado e resolvido pela inteligência, e não força bruta, do protagonista vivido por Gabriel Byrne.
Falo em resistir ao tempo porque o cinema dos irmãos Coen é marcado pela releitura e apropriação de códigos de gêneros bem estabelecidos pelo cinema clássico americano, tipo de coisa que pode facilmente causar admiração na época em que é lançado mas, trinta anos depois, são tantas obras de apropriações, homenagens e referências, inclusive na longa carreira dos cineastas que se seguiu a este que é apenas o terceiro filme da dupla, que seria bastante possível se tornar datado ou perder o seu frescor e interesse. Mas Ajuste Final me parece atingir um equilíbrio que, ao contrário de muitos de seus fãs, acredito que nem sempre exista em seus filmes, alguns parecendo exercícios acadêmicos estéreis, às vezes carregados nas tintas, com o caricato e o patético se misturando à tragédia e ao fatalismo, às vezes engessados por uma narrativa e formalismo muito autoconscientes ou orgulhosos de si.
Aqui, no entanto, há um roteiro muito esperto que flui deliciosamente: um mafioso em ascensão quer matar um vigarista que está lhe roubando, mas o mafioso que manda na cidade não autoriza, pois trata-se do irmão da mulher por quem está apaixonado; o personagem de Byrne, braço direito deste último, não acha uma boa ideia comprar briga com o primeiro por causa disso (e por outros motivos); e com razão, pois a partir daí começa a escalada de violência. Estamos na América pós crise de 1929 e a “roupagem” é a corrupção e lei andando de mãos dadas como dita os filmes de gângsteres dos anos 30 e os filmes noir dos anos 40. A inspiração é nos romances policiais do escritor Dashiell Hammett, e de fato Ajuste Final tem uma trama central bem similar a The Glass Key, que teve duas adaptações para o cinema, em 1935 e 1942. Esta última (que no Brasil se chamou bizarramente Capitulou Sorrindo) me veio à mente enquanto via o filme dos Coen por uma semelhança interessante, e que não sei se está presente na obra original: tanto o protagonista de Alan Ladd no clássico noir quanto o de Gabriel Byrne, tentam solucionar um problema com base na esperteza e sagacidade, mas mesmo assim ambos passam seus filmes apanhando o tempo todo. Há um tom mais cômico e leve no filme com Ladd (e arrisco dizer um conteúdo homoerótico e sadomasoquista nas surras que ele leva), enquanto os Coen, apesar do humor mordaz em alguns momentos, ressalta este embate entre brutalidade e inteligência - o personagem está o tempo todo sendo chamado de “espertinho”.
Mas voltando ao roteiro e ritmo, é admirável como tanta coisa acontece durante todo o filme mas as sequências em si possuem uma outra velocidade, mais lentas, o que dá tempo pra que cada cena possa explorar as dinâmicas e os conflitos entre personagens. O drama, assim, é intensificado, a sensação de perigo é palpável (uma ida à floresta dura tanto quanto necessário para que se torne um “passeio” angustiante), as reviravoltas e reações inesperadas fazem mais sentido. É verdade que o protagonista também conta com a sorte em certos momentos, mas quem conhece a carreira dos Coen sabe o quanto o acaso faz parte de suas narrativas e filosofia, e aqui não chama tanta a atenção, e o sucesso do filme está nesta discrição e comedimento tanto temático (o chapéu é um objeto de importância que pontua o filme de forma elegante) quanto na fotografia que filia a obra mais ao cinema noir (cortesia de Barry Sonnenfeld, um ano antes de se tornar diretor) sem fazer disso um fetiche pelo gênero.
Ajuste Final (Miller 's Crossing, 1990) está disponível no Star Plus.