Quando decidi ver Rapado (1992), longa de estreia do argentino Martín Rejtman, para indicá-lo aqui, ao fim do filme percebi que não só fiquei com vontade de rever seu segundo longa, Silvia Prieto (1999), como precisaria fazer recomendação dupla, já que o primeiro isoladamente pode parecer uma experiência estranha, mas vistos em conjunto o espectador pode ficar mais e melhor situado.
Rejtman é um nome pouco conhecido no cinema internacional, pelo menos não tanto quanto cineastas argentinos que começaram a se destacar após essas suas obras nos ano 90 (Lucrécia Martel, Lisandro Alonso, Pablo Trapero e alguns outros), mas com o passar do tempo Rapado se consolidou como um precursor da chamada nova onda argentina e com uma restauração de uns anos atrás, pode ser melhor apreciado desde então.
É um filme curto, 76 min, muito simples e direto, correndo o risco de ser descartado como simplório. E não acontece muita coisa: acompanhamos por uns dias as perambulações do jovem protagonista por Buenos Aires logo após ter sua moto roubada. O estranhamento pode vir das expectativas que o espectador naturalmente cria quando está diante de um filme e aqui não são atendidas. Não há uma história definida se desenrolando, nenhum evento dramático ocorre, nem mesmo uma jornada de aprendizado. Psicologia de personagens? Nada. Ainda no início, Lucio, o protagonista, passa por uma barbearia a caminho de casa; decide entrar, como que por acaso, e raspa a cabeça. Pelo comentário do pai, mais adiante, parece ser a primeira vez que ele faz isso. Por que? Pra que? E qual significado tem isso dentro da narrativa, a ponto de dar título à obra? Não sabemos e ao filme não parece interessar dar algum sentido. Como não interessa também se filiar a algum sociologismo ou comentário político a partir do roubo da moto - afinal, é inevitável lembrar do clássico neo-realista Ladrões de Bicicleta (1948) e no entanto Lucio não parece depender de seu veículo para sobreviver, morando com seus pais, uma típica família classe média.
Mas a recusa de Rejtman em ser sobre ALGO que faz Rapado ser tão interessante. Em especial pelo próprio momento histórico de sua realização, de crise econômica e política (a Argentina com uma democracia tão jovem quanto a do Brasil) e um cinema marcado ainda pelas denúncias e representações dos horrores da ditadura. Nesse contexto, a proposta do filme se limita a um registro realista da cidade e dos espaços que circulam os personagens em contraste com atuações minimalistas (aos que conhecem o cinema do finlandês Aki Kaurismäki, é uma boa referência) e humor absurdo decorrente dos atos mais triviais. Tão carentes de explicação quanto alguns dos comportamentos, são as elipses que deixam mais pontas soltas ficando a cargo do espectador a interpretação que (e se) quiser dar. O resultado é uma pequena crônica divertida (o cineasta, vale lembrar, é também escritor e Rapado se baseia em um conto seu de mesmo nome) que sob um olhar atento pode se revelar fascinante nos pequenos gestos e detalhes e se torna um inesperado documento de um modo de viver naquele momento e naquele lugar.
Já o filme seguinte do diretor, Silvia Prieto, é muito mais fácil de conquistar um público, mas em retrospecto pode ajudar a compreender melhor a obra anterior ou, no mínimo, deixar mais familiarizado com seu estilo. Aqui temos uma comédia escancarada, amalucada e ligeira, uma legítima screwball nos moldes de Rejtman vistos em Rapado: o cotidiano ordinário de personagens que pouco reagem (as pessoas não riem, choram ou explodem em emoções nesses filmes) em uma narrativa que caminha e se desvia de acordo com seus comportamentos inusitados; o humor que surge dessas situações e a recorrência de alguns motivos para efeito cômico - no primeiro filme a constante circulação de uma nota de 100 falsa, e aqui um terno Armani (embora como já dito, o cineasta não sublinha significados, vale pensar sobre os objetos que passam de mão em mão, como moeda de troca ou por puro acaso e que compõem o todo).