O propósito aqui é dar dicas apenas de filmes, mas obviamente que ia chegar o dia da exceção pra recomendar uma série de TV. Mas apenas porque ela parece ser pouco conhecida e se trata de algo realmente especial e único.
How To With John Wilson é uma produção da HBO e tem apenas duas temporadas (uma terceira já está em produção) de seis episódios de apenas 28 minutos cada. Podem ser vistos isoladamente, mas é tudo tão incrível que você vai querer ver desde o início.
John Wilson é um documentarista que vive em Nova York e cada episódio parte da ideia de supostamente ensinar ou servir de guia para algo, e que dá título a eles: "Como Manter Uma Conversa Fiada", "Como Dividir uma Conta", "Como Jogar Suas Pilhas Fora", etc. Digo supostamente porque esse é um ponto de partida que pode levar às mais inesperadas situações e pessoas.
Mas primeiro, vamos ao formato da série e o impressionante trabalho de filmagem e montagem. Wilson narra todos os episódios, com uma câmera em primeira pessoa, dando a impressão de um trabalho de um homem só, pois basicamente é ele filmando a cidade e entrevistando pessoas que encontra. Mas sua narração em off é um trabalho dedicado de roteiristas (embora aparentemente ele é o principal autor, ao menos a partir de sua sensibilidade) e pensada em conjunto com as imagens que serão usadas a partir de um acervo que só pode ser gigantesco.
Como muitas vezes eu assisto a algo sem saber do que se trata, minha experiência com o primeiro episódio da série pode dar uma ideia de algumas coisas geniais que ele faz, pois após 5 minutos eu soube que estava diante de algo especial: ao começar o piloto dizendo que nos ajudará a ter uma conversa fiada, a importância disso e os cuidados com os tópicos para que não fique muito sério ou pessoal (já que ninguém gosta disso - "fale do clima, mas não das mudanças climáticas; fale da planta que você tem, mas não fale que foi presente de sua ex que terminou com você etc etc"), percebemos que o humor, mais do que no texto, está no sentido criado (metafórico ou irônico, mas não só) com as imagens que acompanha, registros das ruas, locais, pessoas, situações cotidianas. E eis que ao falar que uma mesma conversa pode ter significados diferentes dependendo do ambiente que se encontra, Wilson, numa universidade, pergunta a um professor de filosofia qual o futuro da humanidade e a resposta que recebe é confrontada com a resposta pra mesma pergunta feita a alguém que ele encontra num evento de luta livre ("Mankind" é o nome de um lutador, o que resulta em mais humor). Ao estender o papo perguntando o que essa pessoa faz da vida, ele diz que caça pedófilos nas redes sociais, fingindo ser um(a) menor de idade para marcar encontros com predadores e denunciá-los. Wilson então pede pra acompanhar uma de suas "investidas" pois considera ser um trabalho que pode ensinar uma ou duas coisas sobre conversa fiada.
São apenas cinco minutos de série e eu tive que pausar para pesquisar se o que estava vendo era mesmo um documentário e que aquele caçador de pedófilos era uma figura real (ele fala o nome que usa no Facebook), pois o desvio que Wilson faz é tão inacreditável e inusitado que cogitei se tratar de ficção. E esta é uma característica de praticamente todos os episódios, em que um tema inicial será moldado e desenvolvido a partir de encontros e decisões durante o percurso. Ou pelo menos assim nos faz pensar, porque é impossível saber o quanto há de planejado e de acaso, e até mesmo o que pode ser planejado a partir de um acaso.
Um episódio mais adiante da primeira temporada veremos que John Wilson tem cadernos com registros de suas atividades diárias cobrindo anos e anos de sua vida. É um dado importante, primeiro porque fica claro que sair com uma câmera e filmar absolutamente tudo que puder e surgir, do mais trivial ao mais excêntrico, é algo que faz há muito tempo, o que resulta nesse vasto acervo que servirá de matéria prima pra construção das narrativas (com a série na HBO, Wilson conta agora com uma equipe que também faz filmagens da cidade, mas o próprio passa até 8 horas diárias filmando Nova York, inclusive sempre de olho em notícias e informações que possam render imagens interessantes). Segundo, porque revela um pouco da neurose do seu autor e como a série parece servir também a um propósito muito pessoal de terapia: sua narração deixa transparecer um sujeito ansioso, a voz é gentil mas meio tímida e vacilante (mas também parece ser um recurso de humor) e ele nunca aparece em cena; na verdade há até um momento na série em que uma pessoa chama atenção para o fato de que ele se esconde e a câmera é sua forma/mediador de se relacionar com o mundo. Deixar essa fala no corte final (perfeitamente integrado ao tema do episódio em questão) é só um dos vários momentos que Wilson se expõe ao longo da série, com direito a exploração de alguns traumas que acumulou durante a vida, todos devidamente documentados em imagens.
Neurose, terapia, Nova York. São palavras que inevitavelmente associamos a Woody Allen, inclusive pela simplicidade de um modo de produção modesto de ambos. Mas How To With John Wilson não é uma versão documental do famoso cineasta que, mesmo nos seus melhores momentos, está inserido em determinados círculos (a intelectualidade nova iorquina, em especial) e a identificação com o espectador vem muito de uma cumplicidade neurótica e narcísica, além de considerável pessimismo. Nada mais distante da série, pois mesmo quando Wilson fala de si, não há nada de egocentrismo, é sempre uma busca por compartilhamento de experiências, refletir questões bastante mundanas e contemporâneas que ressoam em todos. Há um interesse genuíno pelas pessoas que entrevista, algo perceptível pela forma como elas se expõem, e nenhum juízo de valor sobre o que elas falam ou fazem, por mais esdrúxulos que possam parecer. No episódio piloto, sobre conversa fiada, Wilson viaja para Cancún (é interessante e engraçado como muitas vezes o desvio de percurso envolve sair de Nova York) e de repente todo o humor dá lugar a um bonito e comovente encontro que mostra a sensibilidade do documentarista tanto na escuta como no senso de oportunidade, de saber estar diante de algo especial para o seu projeto. Se com cinco minutos do piloto eu achei que estaria vendo algo único, ao final do episódio eu tinha absoluta certeza, algo que foi reafirmado inúmeras vezes nos episódios seguintes, de como os andaimes viram objeto de interesse para se pensar nossa relação com a cidade e sua arquitetura, passando pelo início da pandemia (a primeira temporada foi lançada em 2020, quase toda filmada antes da covid) e até mesmo por um grupo de fãs de Avatar (2009) em um dos mais belos momentos da série.
E como todo grande de sua área, John Wilson conhece e admira os gênios que o precederam, já tendo comentado que suas referências, dentre outros, são Frederick Wiseman, Ken Burns, Agnès Varda, Thom Andersen. Fico aqui pensando o quanto ele adoraria conhecer, caso ainda não conheça, o cinema de Eduardo Coutinho.
Inteligente, divertido, sensível, curioso e generoso com a visão que tem dessa enorme variedade e diversidade de vidas, comportamentos e anseios que habitam a "capital do mundo" (e, portanto, de todo mundo), How To With John Wilson (2020, 2 temporadas) está disponível na HBO Max.
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