Esta semana a cineasta belga Chantal Akerman completaria 72 anos. Infelizmente ela nos deixou em 2015. Seu nome ficou marcado para sempre na história do cinema com a obra-prima Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles, 1975), filme de 200 hipnóticos minutos e de extremo rigor que consiste basicamente em acompanharmos as atividades domésticas da personagem-título (Delphine Seyrig no papel de uma vida) por alguns dias, numa escalada sufocante de alienação e rotina de uma mulher como prisão. Sua carreira, no entanto, está longe de se resumir a isso, mas uma filmografia sempre desafiadora, e em certos sentidos experimental, faz com que a cineasta seja pouco conhecida fora de círculos cinéfilos.
Eu não diria que Anos Dourados (Golden Eighties, 1986) seja um bom ponto de entrada para quem não conhece a Akerman, mas apenas porque seus filmes têm diferenças tão evidentes entre si, que acredito que realmente não importa por onde começar, apenas que vale muito a pena ir a fundo. Este talvez seja o mais "palatável", uma comédia romântica musical que visualmente e em termos de intriga se assemelha aos musicais de Jacques Demy, em especial Duas Garotas Românticas (1967), com figurinos bastante coloridos e personagens em busca de amores, antigos ou não. E, claro, interrompendo a narrativa cantando suas dores e alegrias - aqui com canções escritas pela própria cineasta e moças e rapazes como coro grego ocasionalmente.
Toda a leveza e até uma aparente ingenuidade do todo torna a experiência agradável, mas como é típico da cineasta, sua encenação é cheia de significados a serem descobertos por um olhar mais atento. O filme se passa quase inteiramente dentro de uma galeria comercial, num mesmo piso onde os personagens trabalham, ou estão de passagem, em um salão de beleza, uma loja de roupas, um café e um cinema. No primeiríssimo (e longo) plano que abre o filme, temos o chão do local com muitos pés andando em direções diversas, o que estabelece a dinâmica que teremos ao longo da narrativa, com todas as intrigas e personagens em constante movimento, as diversas pessoas que circulam pelos espaços (com efeitos dramáticos) e a câmera que tenta acompanhar todas as ações que importam.
É fascinante como Chantal Akerman comenta um estado de coisas de uma determinada época - o consumo, as dificuldades do negócio familiar, a aceleração da vida e da padronização de desejos que aquele espaço sintetiza - com simplicidade aparente, um caos em cena cuidadosamente estruturado que não enfatiza nada disso, deixando para o espectador a reflexão que seu olhar permitir (e há muito a se ver que talvez uma única sessão não de conta). E mesmo que nada disso possa ser percebido, os conflitos amorosos mantêm o interesse e a diversão, o elenco é puro charme (liderado por Seyrig, mais uma vez interpretando uma Jeanne) e as resoluções para os romances são pura afirmação e continuidade da vida.
Curioso também é como o filme grita ANOS 80, particularmente a trilha sonora, a ponto de parecer uma homenagem a época realizada décadas depois. Mas feito em 1986 com o título Golden Eighties, é como se a cineasta pensasse num público futuro e de certa forma afasta a sensação de "filme datado". O que não deixa de ser uma marca dos grandes gênios.
Anos Dourados (Golden Eighties, 1986) está disponível na FILMICCA, onde há uma ótima coleção de filmes da Akerman, inclusive alguns dos mais famosos e indispensáveis. Infelizmente não tem (nem em boas condições por outros meios) o documentário Les années 80 (1983), uma espécie de making of e preparação para a produção de Anos Dourados. A FILMICCA é também o único serviço de streaming no Brasil a ter filmes da cineasta.
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