Os primeiros filmes de Pedro Almodóvar, no início dos anos 80, costumam ser considerados seus "menores", marcados por uma anarquia e transgressões morais com muito interesse no choque, mas também com evidentes traços de um gênio ainda rebelde e tateando os temas que lhe são caros e que vai depurar ao longo do tempo, culminando nos anos 90 em dramas e melodramas muito autorais, uma estilística facilmente identificável e que perdura até hoje.
O Que Fiz Eu Para Merecer Isto? é seu filme mais equilibrado dessa fase inicial, vindo logo após o seu mais "ofensivo", Maus Hábitos (1983), que se passa num convento com freiras lésbicas e viciadas em drogas. O equilíbrio não significa fazer concessões, pois visto hoje continua impressionando pela ousadia com que retrata uma família dos subúrbios madrilenhos e serve como evidência de como o cinema ficou "careta" 40 anos depois (não o cinema de Almodóvar, mas o cinema em geral), e sim por uma coesão da narrativa aliada a um apuro técnico, do design dos apartamentos às famosas "cores de Almodóvar", que talvez sejam o primeiro de sua carreira. Os diálogos e situações são hilários e inusitados, com uma predileção pelas coincidências de encontros e desencontros que unem os diversos personagens (que culminará alguns anos depois no sucesso internacional de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), e que no fim das contas se revela uma obra de forte teor feminista e ode às mulheres, algo presente em toda a carreira do cineasta.
Não é pouca coisa pra uma comédia de absurdos que envolve (homo)sexualidade precoce, prostituição, uma biografia falsa de Hitler, um lagarto, um dentista pedófilo, crime e… telecinese. Muito mais escrachado e debochado que o cineasta que conhecemos hoje, mas não menos reconhecível, o prazer em se ver um Almodóvar jovem permanece intacto.
O Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (¿Qué he hecho yo para merecer esto?, 1984) está disponível na Amazon Prime, MUBI Brasil e Netflix. As três plataformas também possuem em seus catálogos vários outros filmes de Pedro Almodóvar.
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