Há apenas seis atores na história que foram indicados ao Oscar duas vezes interpretando o mesmo personagem: Bing Crosby como o Padre O’Malley em O Bom Pastor (1944) e Os Sinos de Santa Maria (1945); Peter O’Toole como o Rei Henrique II em Becket, o Favorito do Rei (1964) e O Leão no Inverno (1968); Al Pacino como o Michael Corleone em O Poderoso Chefão (1972) e O Poderoso Chefão II (1974); Cate Blanchett como a Rainha Elizabeth I em Elizabeth (1998) e Elizabeth: A Era de Ouro (2007); e os dois que tiveram maior tempo que separam uma indicação da outra, Paul Newman como “Fast Eddie” Felson em Desafio à Corrupção (1961) e A Cor do Dinheiro (1986) vinte e cinco anos depois, e Sylvester Stallone como Rocky Balboa em Rocky: Um Lutador (1976), indicado novamente trinta e nove anos depois (e único já tendo reprisado o papel, em outros cinco filmes) por Creed: Nascido Para Lutar (2015). Crosby é o único a ter vencido na primeira indicação e Newman o único a vencer pela segunda.
Os personagens de Newman e Stallone dividem uma semelhança: são jovens e excepcionais em seus esportes no primeiro filme e décadas depois serão tutores de jovens talentosos que refletem o que foram e os forçam a reexaminar suas vidas. Mas enquanto Rocky Balboa encarna o sonho americano, a recompensa e superação através do trabalho árduo e, para o bem ou para o mal, está preso às convenções do gênero de filmes esportivos, “Fast Eddie” Felson está em duas obras com muitas diferenças entre si e que escapam das convenções mais óbvias, tendo a sinuca e o bilhar como modalidade esportiva, algo a princípio cinematograficamente menos interessante do que o boxe.
Desafio à Corrupção logo nos apresenta este mundo e seu protagonista sob a ótica da trapaça: The Hustler é o título original e a sinuca é um jogo que dá a possibilidade para que alguém muito hábil e/ou profissional finja ser ruim ou mediano e fisgar pessoas que jogam apenas de forma recreativa, aumentando apostas. Eddie Felson é um desses hustlers e junto com seu parceiro e figura paterna Charlie, viaja pelo país aplicando pequenos golpes. O filme de Robert Rossen, no entanto, não está tão interessado na trapaça em si: na verdade, Felson está à procura do imbatível Minnesota Fats (Jackie Gleason numa dessas atuações grandiosas que se devem “apenas” a uma presença particular em cena) para desafiá-lo e mostrar que é o melhor.
E é neste desafio que percebemos que mais do que sinuca, competição e dinheiro, o filme se trata de um duro amadurecimento do protagonista, não como jogador, mas como ser humano. É uma jornada desencantada e amarga, que passará pela possibilidade de se reconhecer como um "perdedor nato", como sugere o personagem do sempre incrível George C. Scott que tentará ensiná-lo a ser um vencedor (na medida do que significa vencer no submundo de apostas do qual faz parte), e de se relacionar com alguém tão desesperançosa quanto ele, como é a personagem de Piper Laurie.
Apesar de não ser uma obra “pra cima”, o filme foi um sucesso de bilheteria na época, elevando o interesse e as vendas de mesas de bilhar, estabelecendo Newman como um dos maiores astros da época e cultuado até hoje como um dos clássicos que representam bem a Hollywood que estava sendo moldada nos anos 60, com dramas sombrios e existenciais que estabelecem uma relação mais complexa com o público. Rossen filma em Cinemascope, formato que era dedicado aos grandes épicos mas que aqui encontra razão de existência na claustrofobia dos ambientes internos e mesas de sinuca. Indicado a nove Oscars, inclusive os principais, não à toa venceu os de Fotografia e Direção de Arte para filmes em preto e branco.
Vinte e cinco anos depois, Newman pediu a ninguém menos que Martin Scorsese para filmar o retorno de “Fast Eddie” Felson à tela. O que se diz é que o ator considerou o cineasta a escolha perfeita pelo seu trabalho em Touro Indomável (1980), a cinebiografia do boxeador Jake LaMotta que, coincidência ou não, faz uma ponta em Desafio à Corrupção como um bartender. A sequência veio primeiro na literatura, com o autor da primeira obra, Walter Tevis, retomando seu livro de 1959 apenas em 1984, num reencontro entre Felson e Minnesota Fats. Tevis viria a morrer logo depois.
Scorsese e o roteirista Richard Price optaram por fazer grandes alterações na história e o personagem de Gleason acabou ficando de fora. Ao invés disso, temos em A Cor do Dinheiro um Felson longe daquilo que melhor sabia fazer (embora ainda “patrocinando” talentos, aqui na forma de John Turturro) que ganha novo ânimo ao conhecer e se reconhecer no jovem Vincent que, apesar de irritantemente consciente dos super poderes que possui com um taco de sinuca, não tem a ambição nem as habilidades de um vigarista como o Eddie de duas décadas atrás. Sai a desilusão do filme de Rossen, entra o conto moral em que o protagonista perverterá o jovem aprendiz (com a ajuda de sua namorada) e renascerá com novas razões pra viver, mas não sem aprender uma ou duas duras lições pelo caminho.
Scorsese tem muito mais tesão em filmar a mesa de sinuca, as incríveis jogadas e parece querer esgotar todas as possibilidades de tornar o jogo excitante e visualmente empolgante, das menores a maiores distâncias da câmera, nos efeitos sonoros, na montagem. Newman, que no primeiro filme passa brilhantemente por diversas facetas do personagem, aqui está devidamente contido, o peso da idade e das possíveis frustrações sobre Eddie claramente sentidas, embora seja possível vislumbrar a energia que já foi mais presente nos momentos de empolgação, nas lições e na lábia que só décadas de experiência poderiam dá-lo. Convencionou-se dizer que o Oscar de Melhor Ator que ganhou pelo filme foi um desses prêmios de consolação que a Academia vez ou outra dá, afinal foi a sétima indicação de Newman na categoria sem ter vencido antes (e uma oitava como produtor de Rachel, Rachel, seu primeiro trabalho como diretor - aliás, uma pequena e impressionante filmografia que revela um cineasta de primeira grandeza e incrível sensibilidade) e no ano anterior chegou a receber um Oscar honorário, daqueles que parecem um pedido de desculpas e que anunciam fim de carreira, mas é uma atuação tão merecedora quanto várias outras. E o ator voltaria a ser indicado mais duas vezes nas décadas seguintes, inclusive poderia ter vencido novamente com seu extraordinário trabalho em O Indomável: Assim é Minha Vida (1994).
Tom Cruise, vindo diretamente do set de filmagens de Top Gun (1986), encarna perfeitamente a imaturidade de Vincent. Sempre sorridente e inconsequente, seria fácil ser mais do mesmo do piloto Maverick (que ainda estava nos cinemas quando o filme de Scorsese estreou e certamente contribuiu para a boa bilheteria e visibilidade que teve), mas Cruise tem aqui o apoio da maravilhosa Mary Elizabeth Mastrantonio (indicado ao Oscar de Coadjuvante), como a namorada que extrai o melhor tanto do personagem quanto do ator.
Em resumo, são duas obras que mostram como grandes cineastas lidam com material semelhante não só imprimindo suas visões, mas refletindo as épocas em que foram realizadas - vale notar que é um raro filme que Scorsese faz “sob encomenda”, a única continuação de algo que ele dirige, tendo em comum a presença e genialidade de um dos maiores atores que Hollywood já teve.
Desafio à Corrupção (The Hustler, 1961) e A Cor do Dinheiro (The Color of Money, 1986) estão disponíveis no Star Plus.
Robert Rossen dirigiu poucos filmes, e morreu cedo demais, mas na Oldflix há dois deles, Corpo e Alma (Body and Soul, 1947) e Alexandre, O Grande (Alexander The Great, 1956), enquanto o Oscar de Melhor Filme A Grande Ilusão (All the King’s Men, 1949) pode ser alugado/comprado na Apple TV.
Para achar os filmes de Martin Scorsese nos streamings brasileiros, listei na ocasião em que indiquei outro belo filme seu aqui.
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