Se São Bernardo é um dos maiores filmes do nosso cinema, não deixa de ser impressionante e triste que se mantenha tão atual: realizado há 50 anos por Leon Hirszman e adaptado de obra escrita por Graciliano Ramos quase 40 anos antes, é portanto quase um século que separa a história de Paulo Honório (no filme vivido com a mais alta intensidade por Othon Bastos) dos dias de hoje. E mesmo assim, o que mudou?
O protagonista é o típico capitalista cuja ambição o leva de uma vida humilde a dono da fazenda São Bernardo no interior de Alagoas, propriedade que sempre sonhou em adquirir. Essa conquista é na base da agiotagem, numa implacável cobrança e exploração de juros, e logo Paulo se revela hábil em exercer o coronelismo que o brasileiro conhece tão bem: considera-se dono não só das terras mas daqueles que trabalham para ele, acredita na inferioridade de raças, inibe com violência todo pensamento que lhe desagrada e mesmo pessoas que representem algum tipo de ameaça.
Toda a vida de Paulo é mediada pela lógica do capital, não há relacionamento que não seja visto como uma transação ou negociação. Ao pedir Madalena (Isabel Ribeiro), uma jovem professora da região, em casamento, seu interesse é puramente na geração de um filho para herdar suas propriedades; quando ela cogita na possibilidade, mas dentro de um ano, sua reação imediata é dizer que não há negócio que seja bom com prazo tão longo, e se casam em uma semana. Em outro momento, ao se questionar sobre ser religioso (o filme tem a narração em off de seu protagonista), Paulo conclui ter um pouco de religião, pois “admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na Terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça”.
Para filmar história de indivíduo tão desprezível, Hirszman opta por um distanciamento no próprio uso da câmera, com grandes planos muitas vezes longos, que também valorizam o espaço geográfico e a pequenez do homem diante de tudo. O uso de plano/contraplano é reservado para momentos específicos e dramáticos, um rigor de composição que intensifica o brilhante texto. A atualidade da obra encontra ressonância no próprio momento de “virada”, um jantar em que personagens discutem a decadência da sociedade, as consequências de uma revolução popular e o medo do comunismo. É daí em diante que a vida de quem acredita ter o controle de tudo e todos começa a ruir, a paranoia como sintoma inevitável que o consome e afeta aqueles ao seu redor.
Como no livro, o filme leva essa história até as últimas consequências, e sua crítica explícita aos modos capitalistas impressiona pela capacidade de ser comunicada numa linguagem de fácil compreensão, sem abdicar de um estilo formal complexo e de múltiplos significados.
São Bernardo (1972) está disponível na Globoplay e pode ser visto gratuitamente na plataforma do Sesc Digital até o dia 07 de agosto.
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