Dia 10
32) Pacifiction, do espanhol Albert Serra, quer ser muitas coisas ao mesmo tempo. Ou talvez não tenha pretensão de ser nada. Se se apresenta como estudo de personagem ao manter seu protagonista, De Roller (Benoît Magimel), como foco principal durante toda a projeção, trazendo-o em praticamente todas as cenas, por outro não há muito que dizer quando o tal personagem se mostra tão enigmático que mesmo ao final do filme não fazemos muita ideia de quem é, o que o move ou o que busca. Do mesmo modo, se há sugestões de thriller político no resquício de trama e na atmosfera criada pelo diretor, esta proposta se inviabiliza por não sabermos o que exatamente está acontecendo na maior parte do tempo, qual os riscos envolvidos na posição das pessoas envolvidas e quem são seus antagonistas.
Ao discutir o projeto em entrevistas durante o Festival de Cannes, Serra revelou ter filmado mais de 600 horas de material na Polinésia Francesa, onde o longa se passa, registrando tanto cenas descritas no roteiro quanto momentos inesperados que cruzaram o caminho da produção. Não é difícil imaginar, portanto, que o resultado difuso, sem foco, se deva à incapacidade do diretor de encontrar e construir o que desejava, montando o material mais a partir de sua fascinação pelas imagens do que pelo que estas poderiam evocar. (O fato de a montagem envolver três pessoas – Serra trabalhou ao lado de Ariadna Ribas e Artur Tort – raramente é um bom sinal.)
Sim, Pacifiction conta com sequências plasticamente notáveis, mas tematicamente vazias – a não ser que o intuito do longa seja a de reforçar a ideia óbvia de que o colonialismo é algo deletério. De todo modo, é preciso reconhecer o magnetismo de Benoît Magimel, que quase transforma De Roller em uma figura interessante apenas com sua presença.
Quase.
33) A parceria entre a diretora Kelly Reichardt e a atriz Michelle Williams tem rendido resultados memoráveis, começando em Wendy e Lucy, passando por Certas Mulheres e O Atalho, até chegar a este Showing Up, que se passa em uma pequena comunidade de artistas e acompanha suas ambições criativas, seus problemas cotidianos, suas relações (familiares ou de amizade) e a recuperação de um pombo ferido.
Vivida por Williams como uma figura melancólica e que só não se entrega ao rancor por falta de tempo, Lizzy é uma escultora que trabalha em uma escola comunitária de artes administrada por sua mãe controladora e que se sente pressionada a concluir suas peças a tempo de uma exposição que se aproxima. Irritada tanto pela falta de água quente em sua casa quanto pelo fato de a responsabilidade pelo conserto ser de uma prolífica colega artista (Hong Chau), a protagonista ainda se preocupa com a saúde mental do irmão e com a possibilidade de seu pai (Judd Hirsch) estar sendo explorado por um casal que se hospedou em sua casa há tempos e não parece preocupado em partir.
Vestindo sempre roupas desengonçadas de cores tristes, Lizzy é uma figura que poderia facilmente arrastar o filme todo para baixo com sua personalidade passiva e sem energia – e se isto não ocorre é graças ao talento de Michelle Williams, que compensa estas características com sua habilidade de levar o espectador a compreender os processos internos da personagem apenas com suas expressões corporais e faciais. Quando a artista se concentra em suas criações, por exemplo, podemos quase ouvir seu processo na forma como analisa cada peça e faz pequenas intervenções ou como, depois que estas saem do forno, busca identificar as alterações inesperadas e lidar com estas ao reajustar suas expectativas.
Contando com um senso de humor sutil, daqueles que provocam pequenos sorrisos de reconhecimento no espectador, Showing Up ilustra a versatilidade de Kelly Reichardt ao se contrapor em escala, tema, linguagem e estética a seu soberbo longa anterior, First Cow – A Primeira Vaca da América.
E ainda que o resultado não seja igualmente impactante, a delicadeza deste seu mais recente filme é o bastante para admirá-lo.
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Com isso, encerro a cobertura da 75a. edição do Festival de Cannes – minha primeira desde o início da pandemia.
A lista completa de premiados:
Mostra Competitiva
Palma De Ouro
Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness)
Dirigido por Ruben Östlund
Grande Prêmio do Júri
Close (de Lukas Dhont)
Stars at Noon (de Claire Denis)
Melhor Direção
Decisão de Partir
Dirigido por Park Chan-wook
Prêmio do Júri
As Oito Montanhas (de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch)
EO (de Jerzy Skolimowski)
Melhor Ator
Song Kang-ho em Broker (Beurokeo)
Dirigido por Hirokazu Kore-eda
Melhor Atriz
Zar Amir-Ebrahimi em Holy Spider
Dirigido por Ali Abbasi
Melhor Roteiro
Garoto dos Céus (Walad Min Al Janna)
Roteiro e direção de Tarik Saleh
Mostra “Un Certain Regard”
“Un Certain Regard” – Grande Prêmio
Os Piores (Les pires)
Dirigido por Lise Akoka e Romane Gueret
Prêmio do Júri
Joyland
Dirigido por Saim Sadiq
Melhor Interpretação
Vicky Krieps em Corsage
Adam Bessa em Harka
Melhor Direção
Alexandru Belc por Metronom
Melhor Roteiro
Mediterranean Fever, de Maha Haj
“Coup De Cœur” do Júri
Rodeo
Dirigido por Lola Quivoron
Prêmio Câmera de Ouro (para cineastas estreantes em longas-metragens)
War Pony
Dirigido por Riley Keough e Gina Gammell
Prêmio Cinéfondation
Primeiro Lugar
A Conspiracy Man
Dirigido por Valerio Ferrara
Segundo Lugar
Somewhere
Dirigido por Li Jiahe
Terceiro Lugar
Glorious Revolution, de Masha Novikova
Humans Are Dumber When Crammed Up Together, de Laurène Fernandez
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Um grande abraço e bons filmes!