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Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida Brasil em Cena

 

A exposição pública de eventos privados talvez seja a principal marca da comunicação contemporânea. Ela é a base da atividade dos influenciadores digitais, essas entidades que influenciam apenas por serem quem são, ainda que não sejam artistas, cientistas, filósofos. Como aglutinam em torno de seus perfis milhões de seguidores, funcionam como os maiores garotos e garotas-propaganda da atualidade. Vendem o que se associar a eles, e eventualmente influenciam sobre artes, ciência, filosofia, enquanto mostram como organizam seus sapatos ou fritam um ovo sem óleo.

Bel Bechara e Sandro Serpa são cineastas e resolveram expor publicamente um evento privado de elevada magnitude em suas vidas: a adoção do filho deles, Gael, um garotinho que nasceu em 2021 e entrou para a família deles quando tinha quatro meses de vida. Durante uma hora e meia, o espectador de “Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida” mergulha na vida dessa família. O filme fez sua estreia em 9 de abril de 2024, no festival de documentários “É tudo verdade”, em São Paulo.

A ideia dos cineastas era registrar o processo para mostrar ao próprio Gael, no futuro. O projeto surgiu da provocação de uma assistente social envolvida no processo, que sugeriu ao casal escrever as etapas dessa jornada para conhecimento do filho. Em vez de escrever, incorporaram a tarefa à sua atividade profissional e começaram a filmar.

Bel e Sandro filmaram todas as cenas do documentário, que tem sempre um personagem conversando com a câmera. Na maior parte das vezes, são os próprios diretores, explicando etapas do processo. O tom é confessional, o que imediatamente coloca o espectador como testemunha daquela empreitada. À medida que o filme vai avançando, também vai se percebendo que não se trata apenas de uma sequência de descrições. Somos testemunhas de um diálogo cada vez mais íntimo e emotivo daquele casal.

Frases objetivas e informativas no começo – “Vamos participar de uma entrevista online na qual vão nos apresentar um menininho” ou “A cômoda vai aqui, o berço ali” – aos poucos vão sendo entremeadas por reflexões e expressões de sentimentos – “Ele ainda nem veio e eu já estou com saudade” ou “Meu maior medo é que ele não se alimente direito”.

Bel Bechara, Sandro Serpa e Gael Serpa Bechara: o nome, um tema político

Expondo a intimidade da casa e da família que cresce, a montagem intercala cenas de enorme e genuína emoção – o momento em que Gael é entregue aos pais derreteria uma geleira – a instantes cômicos – o mais engraçado deles protagonizado por Miguelim, o cachorrinho que já fazia parte da família. Juntar crianças e cachorros em cena poderia ser considerada uma solução fácil para enternecer o espectador. Bel e Sandro conduzem esse encontro com tanta naturalidade que o sentimento brota com um misto de ternura e graça, totalmente pertinente.

Se fosse apenas o registro de um momento fundador da vida de três pessoas, filmado pelo celular por pais que se metessem a cineastas, o documentário já teria enorme valor. Voltaremos a esse ponto. Mas essa história está sendo contada por dois cineastas experimentados, com mais de vinte anos de carreira. O que Bel e Sandro exibem na tela é uma história contada por meio de imagens ao mesmo tempo poéticas e poderosas: a sombra do braço do violão no sofá da sala, as grades da janela formando grafismos nesse mesmo sofá, a surpreendente e desconcertante silhueta de um bebê serelepe no quarto escuro, os primeiros passos, filmados ao rés do chão, a mãe com o bebê no colo, em um plano contraluz de tirar o fôlego. Cinema de alta qualidade: é isso que o documentário (também) é.

E nesse ponto voltamos ao tema do valor. Bel e Sandro não são influenciadores digitais, mas expuseram sua vida de forma tão transparente e honesta que parece improvável a qualquer pessoa assistir ao seu documentário sem, pelo menos, refletir sobre o tema da adoção. Marcados por dores, incertezas e expectativas, eles certamente espelham a vida de milhões de pessoas. Quantas delas, depois de verem o filme, terão o impulso de entrar em uma fila para adotar uma criança? Quantas delas, entre as que já se decidiram por isso, reavaliarão a forma pela qual contarão suas histórias a seus filhos e filhas? Quantas experiências serão ressignificadas? Quantas culpas aplacadas?

O convite à reflexão de “Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida” não se restringe ao ato da adoção. O filme provoca ao questionar pelo menos um padrão fortemente associado ao ato de ter um filho – o nome da criança. O discurso de Bel, e a decisão do casal, pela ordem dos sobrenomes de Gael é uma fala política. E ali também o filme se mostra como um poderoso instrumento de conscientização.

Nada desse teor utilitário, no entanto, está na motivação desse projeto. Bel e Sandro começaram a filmar para contar uma história a Gael. Artistas que são, transformaram essa contação de história em um filme. Pinçaram uma canção de Rita Lee para amarrar os fatos – e só por isso eu talvez já me encantasse com o documentário. Pontuado por outras músicas e experimentações musicais, o filme da família Serpa Bechara sinaliza que ali está sendo criado um menino estimulado nas artes. O desejo, de Bel, Sandro e de quem mais viu essa estreia, é projetar o dia que Gael tome o material bruto desse filme e faça sua própria versão. Torço por isso. E não vejo a hora.

 

 

 

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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