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Festival de Cannes 2024 - Dia #02 Festivais e Mostras

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Dia 02

4) Bird, de Andrea Arnold, é um filme que provoca reações ambíguas: embora envolvente, há um certo sentimentalismo em sua narrativa que por vezes soa fora de lugar. Escrito pela própria cineasta, o roteiro gira em torno de Bailey (Nykiya Adams), uma garota de 12 anos que vive um cotidiano marcado por dificuldades e transições, incluindo a primeira menstruação e uma relação conturbada com seu jovem pai, interpretado por Barry Keoghan. Mergulhando pontualmente num tom de realismo mágico que pode ser desconcertante para o público, a abordagem revela, por outro lado, a ousadia de uma diretora sem medo de explorar novas possibilidades narrativas.

Adotando uma câmera inquieta e próxima da protagonista que traz visceralidade ao longa, a cineasta cria uma estética quase documental ao acompanhar a vida da protagonista, permitindo ao espectador sentir a intensidade de suas experiências – e, no entanto, essa mesma intensidade é sabotada por momentos de sentimentalismo forçado que comprometem dramaticamente os minutos finais da projeção. Apesar disso, a relação entre Bailey e o misterioso Bird (Franz Rogowski) se destaca como um ponto central, trazendo à tona questões sobre amizade e vulnerabilidade em meio ao caos da vida familiar. E mais importante: Arnold consegue capturar com sensibilidade a essência das angústias e ansiedades da adolescência em sua forma mais crua e sincera, explorando as complexidades das relações familiares e sociais.

Em última análise, Bird é um convite à reflexão sobre as nuances da vida e as relações humanas, desafiando o espectador a olhar além do superficial e encontrar beleza nas imperfeições do cotidiano.

5) Três Quilômetros para o Fim do Mundo, de Emanuel Parvu, é uma obra que se insere com força no panorama do novo cinema romeno, trazendo à tona questões de intolerância e violência em um contexto que, embora específico, ressoa com realidades universais. Com estética e narrativa minimalistas, características marcantes do cinema romeno contemporâneo, a história gira em torno de um jovem que retorna à sua cidade natal para passar as férias com os pais - um momento de reconexão que rapidamente se transforma em pesadelo quando é agredido depois de ser visto beijando outro homem.

Longe de ser um incidente isolado, este crime de ódio revela as profundas raízes da homofobia e da intolerância enraizadas na cultura local – e a maneira como Parvu constrói esta realidade é notável: mesmo que a violência não seja mostrada de forma gráfica, acaba por atingir fortemente o espectador com a carga emocional da dor e do sofrimento do protagonista. Esta abordagem estilística, por sinal, provoca uma reflexão mais profunda sobre a natureza da violência, que muitas vezes se manifesta de maneira psicológica e emocional, sendo perfeitamente aceitável julgar que o que ocorre com o rapaz depois da agressão física é ainda pior.

Com uma montagem seca e planos longos associados à ausência de trilha não-diegética, o filme é hábil ao produzir uma atmosfera de tensão e desconforto, levando o público a sentir a opressão experimentada pelo personagem de Ciprian Chiujdea. Impiedoso ao não se esquivar das verdades dolorosas sobre a prevalência da homofobia mesmo quando um quarto do século 21 já se foi, Parvu concebe uma obra marcante que desafia o espectador a confrontar suas próprias percepções sobre amor, aceitação e os limites da empatia em um mundo ainda cruel demais.

6) Conhecido por sua habilidade em transitar entre o absurdo e o grotesco, o cineasta grego Yorgos Lanthimos apresenta, em Kinds of Kindness, uma antologia que, composta por três histórias independentes, emprega essencialmente o mesmo elenco (Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley) encarnando personagens distintos em cada segmento – o que, já de imediato, oferece aos intérpretes a oportunidade para que explorem sua versatilidade em composições físicas e psicológicas bastante específicas.

Ironizando uma convenção mais do que estabelecida em produções que adotam a estrutura de antologia – narrativas conectadas por meio de elementos comuns significativos - Lanthimos opta por um detalhe absolutamente trivial como ponto de ligação entre as histórias, o que funciona ao seu próprio modo como uma crítica divertida à insistência em estabelecer conexões onde não há necessidade. Em contrapartida, se há um traço marcante em Kinds of Kindness, este reside no senso de humor peculiar que remete aos primeiros trabalhos do cineasta em seu país natal, resgatando uma forma de sátira que flerta com o fabulesco enquanto se aprofunda em temas pesados e desconfortáveis.

Escrito por Lanthimos ao lado de Efthimis Filippou, o roteiro traz histórias marcadas por um estranhamento que mergulha o espectador em situações bizarras e absurdas onde o destino dos personagens é incerto e suas motivações são obscuras. Beirando três horas, o longa aproveita esta duração para investir em tópicos que incluem a submissão a cultos, dilemas existenciais e relações humanas distorcidas, o que por vezes sugere a falta de um centro temático claro que impede que o filme alcance a coesão dramática das obras anteriores do diretor.

Ainda assim, ao abordar questões acerca dos limites da moralidade e da empatia, Kinds of Kindness desafia categorizações fáceis - e em tempos onde a simplicidade narrativa muitas vezes é dominante, Lanthimos nos lembra de como a complexidade da experiência humana pode nos trazer dores, mas é também o que a torna tão estimulante.

7) Dono de uma obra memorável e essencial para compreendermos o Cinema (e a sociedade) norte-americano a partir da década de 70, o diretor e roteirista Paul Schrader merece toda a tolerância do mundo quando ocasionalmente tropeça – o que, infelizmente, é o que ocorre em Oh, Canada. Girando em torno de Leonard Fife (Richard Gere), um documentarista com câncer terminal que aceita revisitar sua trajetória pessoal e profissional em uma entrevista concedida a antigos pupilos, o roteiro aos poucos revela como o sujeito, ao exigir que a esposa (Uma Thurman) testemunhe a conversa, tem a intenção de levá-la a enxergá-lo como realmente é, numa proposta confessional repleta de desprezo por si mesmo.

Oscilando entre o presente que se concentra na entrevista e flashbacks que retratam sua juventude (quando é implausivelmente vivido por Jacob Elordi – não por falta de talento, mas por pura incompatibilidade física), Oh, Canada parece jamais chegar a uma conclusão sobre o que quer dizer: as confissões de Fife não têm um sentido definido e a narrativa se arrasta sem chegar a lugar algum. Além disso, Gere, um ator que só é eficaz quando o personagem se encaixa perfeitamente em suas limitações, oferece uma performance cheia de maneirismos que jamais convencem.

Propondo-se a trazer uma reflexão íntima sobre a vida e os arrependimentos do protagonista, o roteiro do próprio Schrader (escrito a partir do livro de Russell Banks) falha em capturar a profundidade emocional necessária para alcançar este objetivo – e a narração do filho do documentarista, que aparece ocasionalmente para fazer comentários sobre o pai, parece mais uma adição desnecessária do que um elemento orgânico, servindo apenas para confundir ainda mais o espectador sobre a história que o filme realmente quer contar e resultando em uma sensação de vazio e desapontamento.

18 de Maio de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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