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Festival de Cannes 2024 - Dia #05 Festivais e Mostras

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Dia 5

13) A primeira coisa que deve ficar clara ao discutirmos Lula, documentário realizado por Oliver Stone, é que o filme se destina, em grande parte, a um público estrangeiro – e a intenção de se comunicar com uma plateia que pode não estar familiarizada com as nuances da política brasileira resulta em certas simplificações que, por um lado, podem frustrar aqueles que conhecem a história com profundidade, mas, por outro, permitem que a narrativa seja acessível e compreensível para quem acompanhou tudo à distância (se acompanhou).

Propondo-se a narrar a trajetória de Lula de forma concisa, o longa se concentra especificamente na Operação Lava Jato e no conluio que visava prender o (então) ex-presidente para beneficiar projetos políticos da extrema-direita e, mais tarde, viabilizar a eleição de Bolsonaro. Neste aspecto, o documentário assume por vezes uma abordagem de “melhores/piores momentos” da História recente do país, resgatando eventos-chave como se fosse incidentes isolados em vez de passagens que fizeram parte de um processo contínuo (o que, repito, é compreensível dentro da proposta de Stone). Além disso, para salientar a dramaticidade dos acontecimentos, o cineasta toma certas liberdades previsíveis, como, por exemplo, ao acompanhar a apuração dos votos no segundo turno da eleição presidencial de 2022, quando ignora a lógica regional das preferências e o estabelecimento da vitória de Lula com a entrada dos votos do Nordeste, e opta por criar suspense como se o resultado só se tornasse conhecido depois de concluída a contagem.

Honesto ao não simular uma imparcialidade política que soaria hipócrita (e todo documentário tem uma posição; a diferença reside na sinceridade do filme em assumi-la), Stone deixa clara desde o princípio sua admiração por Lula e outros líderes de esquerda na América Latina. Além disso, ao incluir políticos como Evo Morales e Hugo Chávez, o diretor cumpre a importante função de contextualizar Lula dentro de um movimento mais amplo, o que ressalta suas similaridades e diferenças com relação aos demais líderes.

Há, porém, certas escolhas narrativas menos louváveis – em especial, a concepção da trilha sonora frequentemente maniqueísta: quando Lula fala ou um personagem da esquerda é apresentado, ouvimos acordes alegres; já Bolsonaro e semelhantes são acompanhados por temas sombrios e pesados (e a diferença de tom já é suficientemente refletida nos discursos; comentá-las com a música demonstra falta de confiança no espectador).

No final das contas, contudo, Lula consegue evocar o carisma do personagem-títulos e seu apelo popular, destacando suas conquistas políticas e sociais e o impacto que teve sobre milhões de brasileiros – e é difícil imaginar alguém assistindo ao filme e saindo da sessão sem reconhecer o papel significativo que Lula desempenhou na política nacional.

Marcada por aplausos durante a projeção e depois de sua conclusão, a sessão de Lula no Festival de Cannes ressaltou ainda a admiração do público internacional (que dominava a plateia) e mesmo do diretor do evento, Thierry Fremaux, pelo presidente brasileiros – e eu, que também sempre deixei minha admiração clara, não poderia ter ficado mais orgulhoso.

14) Dirigida pelo russo Kirill Serebrennikov, Limonov: The Ballad é uma cinebiografia sobre o polêmico poeta e ativista soviético Eduard Limonov (Ben Whishaw) que se destaca principalmente pela maneira como retrata as transições temporais ao retratar a vida do protagonista - que, embora seja uma figura complexa e muitas vezes desagradável, é apresentada com uma riqueza de detalhes que permite ao espectador entender as nuances de sua trajetória.

Arrogante, narcisista e inconsequente, características que poderiam afastar o público se não fossem abordadas com a inteligência de seu intérprete, Limonov é visto aqui desde seus primeiros anos de atuação até sua ascensão como escritor e ativista, frequentemente lutando por reconhecimento em meio a um ambiente geralmente hostil politicamente – e, como já dito, Whishaw oferece uma performance notável ao explorar as características mais sombrias do personagem sem tentar suavizá-las, apresentando ao público um sujeito cujo carisma é proporcional à sua agressividade (algo fundamental para que compreendamos inclusive o que ele representava como criador).

O mais fascinante no longa, porém, é a forma como Serebrennikov concebe as transições de tempo, frequentemente realizadas em plano-sequência – como na passagem em que Limonov entra e sai de cenários que vão se alterando radicalmente em suas concepções de luz e direção de arte, criando uma fluidez que torna a experiência visualmente instigante.

15) Megapolis é um filme fascinante em suas muitas falhas. Marcando o retorno de Francis Ford Coppola à direção de longas-metragens aos 85 anos de idade e depois de treze anos de ausência (seu trabalho anterior havia sido Virgínia, de 2011), esta é uma daquelas obras que se tornam uma experiência: visualmente instigante (fragilidades dos efeitos visuais à parte) e repleta de ideias provocativas, seu efeito sobre o público é ao mesmo tempo (e paradoxalmente) o de superestimulação dos sentidos e de certo tédio ocasional em função de sua dispersão temática.

Criando um universo imersivo e rico em detalhes, a direção de arte e os figurinos refletem o acúmulo de conceitos e ideias ao longo das décadas de desenvolvimento do projeto, o mesmo se aplicando às discussões e temas que Coppola propõe e que, indo de questões filosóficas a políticas, históricas e contemporâneas, confere ao roteiro certa falta de coesão que sugere uma ambição maior do que aquilo que um único filme conseguiria fazer. Sim, há sequências brilhantes que exploram conceitos complexos de modo admirável, mas há outras em que o filme se entrega a tangentes que sacrificam a história central sem acrescentar muito ao resultado geral da narrativa.

Repleto de ideias ousadas e explorações visuais que abordam temas complexos de maneira adulta, Megalopolis exibe suas muitas inspirações de modo claro na tela – inspirações históricas que vão da Segunda Guerra ao 11 de Setembro; do Império Romano à tentativa de insurreição em 6 de Janeiro de 2021 em Washington. Aliás, às referências ao Império Romano incluem não apenas elementos históricos, mas também cinematográficos, remetendo à iconografia clássicas dos filmes de sandália-e-espada. E há, claro, a experimentação de linguagem, como no instante (que possivelmente não será repetido nas sessões comerciais do longa) em que uma coletiva de imprensa ocorre no longa e um ator entra ao vivo no cinema, se coloca diante da tela e faz uma pergunta ao protagonista vivido por Adam Driver – uma quebra radical da quarta parede que tem o propósito de anunciar o grau em que o filme se ancora na realidade contemporânea.

Infelizmente, a ambição artística de Coppola, somada ao longo processo de desenvolvimento do projeto, resultou na inclusão de tantas ideias e referências que o foco se dilui, como se o cineasta se distraísse diante do impulso de dizer centenas de coisas ao mesmo tempo. Ainda assim, assistir ao filme é um prazer justamente por esta ambição, que está a anos-luz de produções feitas por comitês como os da Marvel e que, ao contrário de Megalopolis, parecem mais interessadas em ficar repetindo as mesmas coisas para garantir a aprovação do público – uma preocupação que Coppola claramente descarta, demonstrando o único interesse de realizar uma obra que contemple sua própria imaginação.

16) Uma das maiores surpresas da mostra competitiva até o momento, The Substance, escrito e dirigido pela francesa Coralie Fargeat, é um filme que mergulha o espectador em um universo de body horror digno de David Cronenberg ao acompanhar uma atriz decadente interpretada por Demi Moore que enfrenta os desafios do preconceito despertado por sua idade em uma indústria cruel e sempre interessada na juventude e na beleza. Demitida do programa de ginástica que apresentou por muito tempo (e que remete àquelas sessões guiadas por Jane Fonda que se popularizaram em fitas VHS na década de 80), a protagonista é convidada a experimentar uma misteriosa substância que promete “extrair o seu melhor” – o que na prática resulta em uma versão mais jovem e bela de si mesma encarnada aqui por Margaret Qualley em uma performance excelente em seus excessos.

Essa dualidade entre as duas versões da personagem gera uma dinâmica que, remetendo a O Médico e o Monstro, se intensifica em seu tom de humor de forma gráfica e perturbadora. Aliás, Fargeat não hesita em mergulhar no grotesco – e o filme é repleto de passagens que, utilizam uma combinação de maquiagem prostética e efeitos digitais, evocam um horror visceral que mantém o espectador em constante estado de surpresa, já que, quando parece não haver mais como intensificar a experiência, a diretora vai além na escala de gore, demonstrando plena consciência de que estes exageros despertam ao mesmo tempo o choque e o riso. Até que, claro, chegamos a um clímax que se apresenta como uma verdadeira apoteose de excessos e absurdos e que indicam uma audácia admirável por parte da cineasta..

Incluindo uma representação masculina grotesca – e apropriadamente batizada de “Harvey” em referência ao produtor predador Harvey Weinstein -, The Substance reconhece a violência que pode ser despertada (e frequentemente é) pela objetificação feminina e se apresenta como uma resposta à altura que, mesmo fantasiosa, não deixa de ser catártica.

21 de Maio de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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