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Festival de Cannes 2024 - Dia #06 Festivais e Mostras

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Dia 6

17) Durante o primeiro ato de The Apprentice, dirigido por Ali Abbasi a partir do roteiro de Gabriel Sherman, confesso ter ficado preocupado com a possibilidade de que o filme estivesse romantizando de alguma maneira a sociopatia de Donald Trump, que surge como um indivíduo vulnerável, pressionado pela figura paterna e inseguro em sua posição dentro da família e dos negócios do clã – e o fato de o longa trazer momentos de humor (físico, inclusive) apenas contribuiu com este alarme, já que uma das melhores maneiras de despertar simpatia por um personagem é levá-lo a provocar o riso do espectador.

Felizmente, era uma preocupação não justificada.

Abordando a amizade entre Donald Trump (Sebastian Stan) e Roh Cohn (Jeremy Strong), poderoso advogado que se tornou uma espécie de tutor do futuro presidente dos Estados Unidos, The Apprentice acompanha a dupla à medida que o mais jovem vai aprendendo com o veterano todas as estratégias que se tornariam padrão em seu arsenal de manipulações e corrupção – e é uma proeza, diga-se de passagem, que a partir de certo ponto cheguemos a sentir pena de uma figura tão repugnante quanto Cohn, cuja implacabilidade acaba por ser superada pela de seu pupilo (a propósito: ele também foi interpretado por Al Pacino na adaptação do espetáculo Angels in America). E se Strong humaniza um homem cuja trajetória acabou por convertê-lo em uma caricatura histórica, Stan faz também um trabalho técnico impecável ao incorporar gradualmente os maneirismos e tiques vocais típicos de Trump.

O resultado é um estudo de personagem memorável que, longe de perdoar as falhas de seu protagonista, demonstra como sua falta de caráter natural o tornou o aluno perfeito para os ensinamentos de um sujeito pavoroso que, por uma ironia até previsível, aprendeu que um dos traços resultantes de suas “aulas” – a deslealdade – se voltaria contra ele próprio.

18) The Shrouds, novo filme de David Cronenberg que participa da mostra competitiva do festival, parte de uma premissa repleta de potencial, trazendo Vincent Cassel como um viúvo que, incapaz de superar a morte de sua esposa devido a um câncer devastador, desenvolve uma tecnologia inovadora: uma mortalha que permite que os parentes acompanhem em três dimensões o cadáver da pessoa amada em decomposição. Por si só, este conceito é fascinante ao estimular reflexões sobre como lidamos com a perda, o luto e nossa relação com a morte – e por que alguém iria se submeter à autotortura de testemunhar os restos de alguém querido se decompondo?

Infelizmente, Cronenberg parece se esquecer da discussão à medida que seu roteiro vai se entregando a uma série de reviravoltas que começam com a mortalha da esposa do protagonista sendo hackeada, o que o impede de vê-la, e culminam em teorias de conspiração que fazem quase nenhum (ou nenhum) sentido. Para piorar, o excesso de diálogos, somado à falta de uma abordagem visual mais interessante, torna The Shrouds um filme que se arrasta em longas conversas que não conduzem o espectador a qualquer lugar interessante.

É interessante, neste aspecto, contrastar este longa com The Substance, de Coraline Fargeat, que ironicamente consegue capturar melhor do que The Shrouds o espírito provocativo e visceral que sempre marcou o cinema de Cronenberg – bem como seus aspectos gráficos mais óbvios. Enquanto The Substance utiliza o body horror para comunicar suas ideias de forma visualmente instigante, por exemplo, este trabalho de Cronenberg parece preso em um ciclo interminável de diálogos que pouco servem à narrativa, gerando uma frustração que aumenta à medida que o filme avança e se torna óbvio que não se interessa pelos conceitos que nos havia apresentado.

Com um desfecho particularmente ruim, The Shrouds começa como a promessa de uma nova obra-prima do mestre Cronenberg, mas conclui como uma grande decepção.

20) Co-produção entre Alemanha, Inglaterra, França e India, Santosh é um filme que, roteirizado e dirigido por Sandhya Suri, lança um olhar completamente desesperançoso sobre a sociedade indiana e sobre o machismo tóxico que se manifesta em todas as esferas do poder. Interpretada por Shahana Goswami, a personagem-título é uma mulher que, após a morte do marido — um policial de baixa patente atingido por uma pedrada durante um protesto —, se vê diante da oportunidade de herdar seu emprego na força policial. É então que uma jovem local pertencente a uma casta considerada inferior é encontrada estuprada e morta – um crime cuja investigação desinteressada é testemunhada pela protagonista, que carece da patente necessária para interferir no processo.

Traçando um retrato sombrio especialmente da força policial indiana, entre a qual a corrupção e a indiferença em relação às vítimas são comportamentos recorrentes, Santosh parece sugerir algum grau de otimismo ao nos apresentar a Geeta Sharma, uma oficial que, responsável por criar o equivalente à delegacia de mulheres no país, assume a condução do caso depois que pressões políticas resultam na remoção de seu antecessor – e até mesmo a personagem de Goswami, que se torna sua protegida e aprendiz, exibe uma esperança que, claro, logo se mostra injustificada à medida que percebemos como a veterana está longe de ser um exemplo de conduta.

Extraindo parte de sua força justamente da dinâmica entre as duas mulheres, Santosh se beneficia das performances poderosas de Goswami e de Sunita Rajwar – e a diretora Sandhya Suri também é hábil ao criar uma atmosfera opressiva que permeia toda a projeção. Por outro lado, como roteirista Suri se sai bem pior, estruturando a trama de modo frouxo, o que acaba se tornando um problema ainda maior graças à montagem sem ritmo. Além disso, sequências que obviamente deveriam gerar suspense fracassam neste propósito, restando apenas a denúncia social e política do projeto para redimi-lo (ao lado das atuações). Infelizmente, não é o bastante.

21) A natureza ambiciosa do novo projeto de Kevin Costner já se mostra presente em seu título: Horizon: An American Saga - Chapter 1, indicando não apenas se tratar de (atenção) uma saga, mas de uma que exigirá várias partes para ser narrada – e a proposta inicial do astro/diretor é a de que ao final sejam quatro capítulos. Considerando como este primeiro tem três horas de duração, é bastante possível, portanto, que estejamos falando de uma história que levará doze horas até chegar ao seu desfecho.

E já nos primeiros minutos deste Capítulo 1 fica patente como Costner realmente tem a intenção de investigar a fundação do conceito de expansão e da identidade norte-americanos ao nos apresentar a um cenário vasto e desolado que logo vê a chegada de um grupo de colonos que é prontamente exterminado por indígenas – um incidente que, pontuado por uma trilha sonora que parece tratar os nativos como ameaça, desperta a preocupação de que o filme esteja caminhando no sentido de tratar as vítimas de uma ocupação como vilãs por reagirem aos invasores, o que, diga-se de passagem, está na base do western. Felizmente, ao longo da projeção Costner nos lembra de que é o realizador por trás de Dança com Lobos, que, mesmo longe da perfeição, representava uma mudança de paradigma do gênero ao reconhecer a humanidade dos indígenas e a natureza brutal da violência que sofreram enquanto viam suas terras tomadas com o apoio do governo do país.

Adotando um ritmo que não teme investir em momentos mais contemplativos, lembrando o espectador da beleza da paisagem que, afinal, está na base dos conflitos aqui abordados, este Capítulo 1 é grandioso em sua escala, saltando entre uma grande galeria de personagens que se dividem em narrativas paralelas que pontualmente se cruzam – um encontro que deve se tornar ainda mais frequente nas continuações. Eficaz também em suas sequências de ação, o longa nem sempre consegue justificar sua extensão, soando prolixo em alguns pontos, mas esta é uma avaliação que se tornará mais apropriada quando Costner concluir sua visão e pudermos contemplar o quadro completo de sua saga. Algo que possivelmente dependerá da reação que esta primeira parte inspirar nas bilheterias.

22 de Maio de 2024

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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