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Dia 7
22) Responsável por um dos melhores filmes da última década – Projeto Flórida -, o cineasta Sean Baker realiza, em Anora, a primeira comédia escancarada que vi no Festival de Cannes deste ano. E isto é uma surpresa, já que uma descrição direta da premissa nos levaria a imaginá-lo como uma obra completamente diferente: vivida por Mikey Madison, a personagem-título é uma stripper e garota de programa que, depois de atender o filho de um oligarca russo, acaba se casando com o jovem em Las Vegas – uma notícia mal recebida pelos pais, que encarregam três de seus “funcionários” nos Estados Unidos de resolver o problema.
Adotando uma abordagem que se equilibra bem entre o potencial dramático da história e o humor que resulta do choque entre aquelas pessoas, Baker deixa claro desde o princípio como Anora, apesar da situação vulnerável, é uma jovem determinada que não aceitará simplesmente seguir as determinações daqueles indivíduos – uma postura que Madison encarna com intensidade, transformando a personagem em uma força da natureza. Isto, claro, se contrapõe às figuras dos três “capangas” escalados para lidar com a moça e cuja frustração crescente (e surpresa diante da teimosia da mulher) resulta em sequências de humor (físico, inclusive) surpreendentes e que conseguem manter o ritmo mesmo tendo uma duração bem mais longa do que o habitual – em especial a que marca o primeiro confronto entre todos.
Evitando qualquer sentimentalismo, Anora é um estudo de personagem que, saltando entre gêneros de modo fluido, oferece a Mikey Madison uma oportunidade única de demonstrar sua versatilidade, intensidade e carisma como atriz – algo que a jovem certamente não desperdiça.
23) Chiara Mastroianni é uma nepo baby nascida da relação entre dois dos maiores ícones do Cinema: a francesa Catherine Deneuve e o italiano Marcello Mastroianni. Isto não a impediu, porém, de construir uma carreira reconhecidamente rica e na qual estabeleceu sua própria identidade, vencendo prêmios e criando performances memoráveis. No entanto, o peso do legado dos pais certamente é algo impossível de ignorar – e o fato de a atriz transformar isso em Arte neste Marcello Mio é algo notável por si só.
Escrito e dirigido por Christophe Honoré, o longa acompanha Chiara (usarei o primeiro nome para evitar confusões entre pai e filha), que, interpretando a si mesma (ou uma versão de si mesma), acorda certa manhã e, ao olhar para o espelho, vê o reflexo de Marcello em seu lugar. Ao acordar do desmaio provocado pelo choque, ela decide abraçar não só sua ascendência, mas a própria identidade do pai, passando a se vestir como ele, a incorporar seus maneirismos e a atender por seu nome – o que, claro, causa imensa preocupação em sua família e em seus amigos, que, comprovando o prestígio do cineasta e do projeto em si, surgem também como (versões de) si mesmos, incluindo Deneuve, Fabrice Luchini, Benjamin Biolay, Melvil Poupaud, Stefania Sandrelli e Nicole Garcia.
Em função desta decisão, o filme acaba trazendo um elemento de metalinguagem constante que, refletindo de modo curioso a construção das personas criadas por celebridades, usa as projeções do público com relação àquelas pessoas quase como um elemento narrativo do projeto. Aliás, considerando a longa e produtiva carreira de Marcello Mastroianni e suas várias versões cinematográficas, é interessante perceber a dinâmica criada em uma sequência na qual Chiara vai a um programa de televisão que está reunindo sósias do pai (cada um caracterizado como um dos personagens que este viveu) e que, culminando numa curiosa perseguição, pode ser interpretada tanto sob a luz do filme em si quanto sob a trajetória de uma atriz cujo pai foi um dos maiores representantes de sua profissão.
Assim, é estranho como a partir de certo momento o longa parece se sentir intimidado diante da própria ambição e passa basicamente a investir em variações das situações e discussões já apresentadas (ainda que contendo um momento incômodo entre Deneuve e a filha que, embora, faça sentido na lógica do filme e da personagem, soa como um passo desnecessário com o objetivo apenas de despertar desconforto). De todo modo, um projeto como este – e contando com tantas participações preciosas - é incomum por natureza e fico feliz que exista, mesmo que acabe por desapontar.
24) Poucas coisas são mais cafonas do que um filme de Paolo Sorrentino tentando soar profundo. Em Parthenope, parte da mostra competitiva, o italiano concebe toda uma narrativa a partir do conceito da beleza da protagonista e de como esta, uma mulher inteligente e sensível, é constantemente vista apenas como objeto de desejo por parte de todos que a cercam. Infelizmente, a “inteligência” da personagem-título é proporcional à do longa em si – e a única evidência deste imenso intelecto reside no fato de ela ser constantemente elogiada pelos homens que a conhecem por suas respostas rápidas e inspiradas. Que, na realidade, são lugares-comuns vazios saídos da cabeça do próprio Sorrentino.
Aparentemente sentindo-se muito inspirado por criar uma obra cuja mensagem central parece ser a de que a beleza por si só não traz felicidade (ao contrário: pode ser um fardo), o diretor bate de modo insistente nesta tecla quebrada durante intermináveis 136 minutos – e a única coisa que torna a experiência suportável são as belíssimas locações e a performance da estreante Celeste Dalla Porta mesmo que esta seja, vejam só a ironia, objetificada por Sorrentino do início ao fim.
Trazendo também uma breve, mas interessante, participação de Gary Oldman, Parthenope em nada lembra a eficácia de A Grande Beleza e Juventude, remetendo mais a mediocridades como Aqui é Meu Lugar, O Divo e o segmento que Sorrentino comandou para a antologia Rio, Eu te Amo. Aliás, é um tropeço tão grande que, confesso, me fez questionar tudo de bom que fez anteriormente e a suspeitar de que se trataram apenas de acidentes felizes.
25) Um festival como o de Cannes muitas vezes pode sobrecarregar os sentidos – não só pela variedade de temas e estéticas, mas por frequentemente trazer obras que têm uma natureza densa, pesada. Assim, uma animação como Flow, dirigida pelo letão Gints Zilbalodis, representa um raro momento de leveza que se torna ainda mais precioso em função de sua delicadeza e sensibilidade.
Sem utilizar qualquer diálogo, a história gira em torno de um gatinho que, em meio a um cenário pós-apocalíptico, se vê em uma jornada de sobrevivência à medida que o planeta é coberto por água – e isso o leva a um pequeno barco no qual acabará se juntando a quatro outros animaizinhos. Sem fazer qualquer esforço de antropomorfização das criaturas, Zilbalodis extrai tensão, humor e drama a partir das interações de animais que se comportam como o que são – e, assim, quando um lêmure manipula um espelho que provoca um reflexo brilhante na superfície do barco, é claro que o gatinho passará a perseguir o ponto de luz que se move à sua frente. Isto não quer dizer, contudo, que os personagens não se apresentem com personalidades distintas (de novo: refletindo suas espécies) – e não apenas se estabelecem como figuras particulares como geram momentos encantadores a partir dos conflitos que poderíamos esperar diante de uma situação como esta. Ao mesmo tempo, é assim que o filme, ágil em seus breves 85 minutos, cria um arco narrativo eficaz: além de torcermos (claro) pela sobrevivência dos bichinhos, é tocante vê-los se tornando cada vez mais presos (física e emocionalmente) uns aos outros.
Trata-se de uma experiência tão envolvente que mal notamos como, tecnicamente, a animação às vezes remete a um game dos anos 2000 na simplicidade de seu tratamento de sombras e texturas. Ao contrário: isto acaba se tornando um charme adicional da narrativa.
24 de Maio de 2024