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Festival de Cannes 2025 - Dia #09 Festivais e Mostras

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Dia 9

29) Depois de participar da mostra Un Certain Regard em 2018 com seu Longa Jornada Noite Adentro (do qual não gosto muito, devo dizer), o jovem cineasta chinês Bi Gan teve seu novo trabalho confirmado na competitiva de Cannes 2025 apenas alguns dias antes do início do evento: Resurrection. Talvez em função da entrada tardia no cronograma ele tenha sido programado apenas para o fim do festival e em um horário no fim da noite, 22h – duas decisões complicadas se considerarmos que se trata de um filme com 160 minutos de duração, o que talvez explique por que tantas pessoas deixaram a sala durante a projeção. No dia seguinte, nos corredores do Palácio dos Festivais, muitos admitiram tê-lo achado insuportavelmente monótono – e embora compreenda por que alguns podem ter se sentido entediados (até mesmo pelo cansaço acumulado), a qualidade narrativa do longa é tamanha que não posso deixar de considerar injusta a rejeição por ele sofrida.

Partindo de uma premissa tão complicada que nem mesmo as três ou quatro cartelas de explicação que abrem a projeção conseguem torná-la mais compreensível, o roteiro escrito pelo próprio diretor se passa em uma realidade na qual a humanidade parou de sonhar, o que por algum motivo lhe conferiu imortalidade. Contudo, algumas pessoas (conhecidas como phantasmaers) ainda preservam esta capacidade, conseguindo mergulhar em seus próprios sonhos – e acabam atraindo a atenção de outros indivíduos que têm o poder de enxergar o que os tais phantasmers veem ao sonhar.

Ou algo assim. Porque a verdade é que durante boa parte de Resurrection eu sentia estar deixando passar alguma informação importante que esclareceria toda a trama; isto é, ao menos até perceber que buscar “decifrar” o filme era um esforço tolo, já que o que de fato merecia atenção eram a atmosfera onírica construída por Bi Gan e, principalmente, sua elaborada homenagem à história do cinema e à evolução de sua linguagem. Pois o fato é que o longa tem uma estrutura quase antológica, sendo construída a partir de cinco ou seis histórias que, em sua abordagem, refletem períodos e estéticas diferentes da Sétima Arte, tendo em comum apenas a figura do phantasmer vivido por Jackson Yee, que em cada segmento interpreta um personagem distinto.

Assim, os vinte minutos iniciais do filme, completamente sem diálogos e apresentados em uma razão de aspecto 1.33:1, refletem os primórdios do cinema, chegando a fazer referências inclusive a alguns dos esforços que antecederam a criação do cinematógrafo pelos Lumière – como o fenacistoscópio, dispositivo que envolvia discos com ilustrações sequenciais em suas bordas que, quando girados, criavam ilusão de movimento. Ainda nesta introdução há homenagens ao expressionismo alemão (especialmente Nosferatu) e aos filmes de trucagens típicos dos primeiros anos do cinema, exemplificados pela obra de Georges Méliès. Da mesma forma, O Regador Regado, dirigida pelos Lumière e considerada a primeira comédia produzida pela nova mídia, recebe dupla homenagem: uma recriação direta e, mais tarde, através de sua projeção sobre um lençol, criando uma elegante conexão entre o início e o final da narrativa – que traz também brincadeiras com o noir, incluindo uma citação direta de A Dama de Shanghai.

Incluindo momentos de malabarismo técnico notáveis, Resurrection traz, por exemplo, o contrazoom criado por Hitchcock em Um Corpo que Cai (e que consiste na aproximação física da câmera de um objeto enquanto um zoom out é realizado - e vice-versa), mas que aqui é executado com uma variação curiosa que o faz parecer quase impossível: enquanto o contrazoom é executado, os objetos em cena também parecem se mover, criando um efeito de deformação na profundidade ainda mais intenso. Já em outro momento, Bi Gan emprega um split focus (técnica adorada por Scorsese e De Palma e que Kléber Mendonça Filho também utilizou em O Agente Secreto), que consiste em manter em foco perfeito elementos nas extremidades do campo enquanto o espaço entre eles surge desfocado – e que aqui também ganha uma variação curiosa e rara ao ser combinado com uma panorâmica vertical (tilt).

Já o penúltimo segmento (ou “sonho”), ambientado na virada do milênio durante a ansiedade coletiva relacionada ao "bug do ano 2000", constitui talvez o grande destaque técnico do longa, sendo rodado inteiramente em um plano-sequência de aproximadamente 35 minutos e durante o qual a câmera percorre espaços amplos, sobe e desce escadas, atravessa vielas e alterna entre objetividade e subjetividade, assumindo temporariamente o ponto de vista de um personagem. Trata-se de uma proeza tão impressionante que, quando finalmente houve um corte, a plateia que ainda permanecia na sala Debussy se entregou a uma empolgada salva de palmas.

Rico em simbolismos e apresentado uma essência poética em sua abordagem, o filme ainda concebe imagens profundamente evocativas como a do monstro introduzido no início e cuja deformação nas costas se revela um projetor cinematográfico - e trocar o rolo de filme neste projetor significa desencadear novos sonhos da criatura, o que se traduz em um comentário inspirado sobre a relação entre o cinema, imaginação/sonhos e vivências pessoais na criação das histórias. Para completar, a estrutura circular da narrativa culmina em um plano final maravilhoso, consolidando o filme como uma homenagem não só ao cinema, mas também ao próprio cinéfilo.

E não há lentidão ou tédio pontual que elimine o fascínio que Resurrection é capaz de despertar.

30) Ao longo de sua longa e bela carreira, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne se firmaram como cineastas com sensibilidade admirável e cujas obras trazem uma essência profundamente humana – e mesmo que seus filmes mais recentes tenham alcançado resultados apenas medianos, sua filmografia se manteve fiel ao compromisso com personagens à margem da sociedade, uma característica claramente presente em Jovens Mães, que além de tudo representa um retorno à boa forma por parte dos veteranos.

Desta vez, os Dardenne voltam seu olhar para a situação de um grupo de adolescentes grávidas que vivem em um abrigo para jovens em situação de carência -  seja esta financeira, familiar, psicológica ou emocional (ou, como frequentemente acontece, todas ao mesmo tempo). Acompanhando cinco jovens, cada uma com sua própria história de obstáculos, o roteiro escrito pelos cineastas nos apresenta a uma garota que vem de um ambiente familiar marcado por violência física, outra que tem um passado de dependência química e assim por diante, alternando entre as personagens vividas com talento por atrizes estreantes.

Despreparadas emocional e psicologicamente para tamanha responsabilidade, as garotas enfrentam uma realidade que se torna ainda mais complexa em função da ausência dos pais de seus filhos - apenas uma delas conta com o companheiro, ilustrando como, enquanto a mulher fica biologicamente ligada à maternidade e socialmente pressionada a assumir este papel como inevitável, muitos homens simplesmente abandonam a situação, negando a paternidade ou se afastando. Além disso, a imaturidade resultante da pouca idade se torna patente em vários momentos importantes, como na cena em que uma jovem, triste porque o namorado não lhe dá atenção, se irrita quando uma conselheira do abrigo a alerta de que seu bebê está com fome, respondendo impulsivamente que ela também está - sinal claro de uma percepção juvenil que ainda não distingue bem entre as necessidades de uma mãe e de uma criança.

Esta incapacidade de diferenciação é resultado de uma das tragédias da gravidez adolescente, que traz um fim precoce da infância e adolescência ao impor responsabilidades para as quais estas jovens não estão preparadas. Enquanto isso, a questão socioeconômica piora este quadro, já que as gestantes retratadas aqui se encontram em situação de extrema vulnerabilidade material, sendo tocante, por exemplo, perceber como uma delas chega a nutrir como maior sonho a possibilidade de se tornar inspetora ferroviária - uma aspiração que mostra como desde cedo são condicionadas a ter expectativas limitadas, já que cresceram em um contexto que restringe suas possibilidades.

Dito isso, a diversidade de trajetórias e perspectivas entre as personagens configura um elemento narrativo significativo: algumas são completamente desprovidas de suporte familiar ou foram expulsas de seus lares, enquanto outras ainda mantêm algum vínculo com suas famílias, embora insuficiente para dispensar o acolhimento institucional. Igualmente variadas são suas intenções quanto ao futuro: algumas estão determinadas a criar seus filhos, ao passo que outras optam pela adoção - e o longa acertadamente se abstém de julgamentos morais sobre qualquer destas escolhas, já que as histórias das jovens trazem cicatrizes que muitas vezes as justificam. Uma das adolescentes, por exemplo, busca contato com a mãe biológica que a abandonou, procurando compreender as motivações por trás da decisão e examinar se seus próprios sentimentos em relação à gravidez e ao recém-nascido espelham aqueles experimentados por sua genitora, numa busca que revela o temor de reproduzir involuntariamente o ciclo de abandono que marcou sua própria trajetória.

Com uma abordagem estética que privilegia a proximidade física da câmera em relação aos rostos das personagens, numa estratégia que visa estabelecer uma conexão emocional direta entre o espectador e as jovens, Jovens Mães permite que façamos uma observação minuciosa de cada nuance expressiva, cada hesitação no olhar, cada manifestação de dúvida, medo, frustração ou alegria. Com isso, passamos a conhecer cada uma das garotas, constatando as diferenças de personalidade e maturidade entre estas - e é revelador perceber como uma das gestantes, que é apresentada como tendo maior "instinto maternal" por sempre se esforçar para cuidar das companheiras do melhor modo possível, demonstra firmeza em sua decisão de entregar o próprio bebê para adoção por compreender que esta é a melhor opção para a criança naquelas circunstâncias.

Especialmente comovente nos momentos em que retrata gestos de generosidade - como na cena em que uma jovem, percebendo a hesitação da irmã em verbalizar um pedido, antecipa-se com um abraço e com a resposta à pergunta não feita, poupando-a do constrangimento que está experimentando - Jovens Mães se beneficia também de momentos de autenticidade não planejada, como na sequência final envolvendo a interação entre uma personagem e um bebê cujo sorriso espontâneo ocorre precisamente no momento de maior impacto dramático.

Uma coincidência que comprova como, a esta altura, até o universo conspira a favor dos fantásticos irmãos Dardenne.

23 de Maio de 2025

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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