… através dos corredores, destes salões, destas galerias, desta construção de um outro século, este hotel imenso e luxuoso, barroco, lúgubre, onde corredores intermináveis seguem outros corredores silenciosos, desertos, encrustados de ornamentações sombrias, frias feitas de cortiço, reboco, gesso, mármore, espelhos negros, pinturas escuras, colunas…
Você é como uma sombra esperando que eu me aproxime.
“Ame-o ou odei-o”. A recepção de O Ano Passado em Marienbad parece se dividir entre esses dois extremos. Alguns de seus detratores o definem como sendo incompreensível, pretensioso, afetado, artificial e bobo. O filme do francês Alain Resnais foi inclusive incluído na lista de piores filmes de todos os tempos, produzida por Harry Medved, Randy Dreyfuss e Michael Medved, no livro The Fifty Worst Films of All Time (And How They Got That Way), de 1978. Na época do lançamento do longa-metragem, Pauline Kael se mocou do que ela chamou de “filme experimental high-fashion, um trabalho de neve no palácio de gelo… de volta à festa não-divertida para não-pessoas”.
Em compensação, esse controverso clássico do cinema francês é frenquentemente citado como um dos filmes mais influentes do pós-guerra, uma obra-prima inventiva e original que causou grande impressão e impacto em cineastas como Stanley Kubrick, David Lynch, Agnès Varda, Jacques Rivette, Marguerite Duras e Peter Greenaway. Este último chegou a afirmar, inclusive, que ofilme de Resnais foi a maior influência na sua carreira. Ainda hoje, O Ano Passado em Marienbad não é uma unanimidade e gera discussões. Ninguém pode negar, no entanto, o caráter instigante e desconcertante desse filme-enigma.
Você nunca aparentou estar esperando por mim, mas nos reencontrávamos em cada curva, atrás de cada arbusto, ao pé de cada estátua, perto de cada lago. Como se ninguém tivesse estado naquele jardim, só eu e você.
O Ano Passado em Marienbad é fruto de uma colaboração inspirada entre o grande escritor francês Alain Robbe-Grillet, ícone do nouveau roman, e o diretor Alain Resnais. Vale lembrar que Resnais já havia feito uma parceria do mesmo tipo com Marguerite Duras, também associada ao movimento do nouveau roman, no célebre Hiroshima mon Amour (1959). Tanto Robbe-Grillet quanto Duras tinham uma relação íntima com o cinema. Ambos tiveram uma produtiva carreira também como diretores e suas filmografias parecem um prolongamento de seus romances.
As obras associadas ao nouveau roman desafiam a percepção do leitor/espectador, evitando que este se apegue a um ponto definido e racional de significado. Geralmente a trama parece não ir a lugar algum ou girar em círculos. Nelas, a noção de “verdade” é relativa e instável e a narração é permeada de vazios, rupturas, buracos, revelando uma dissociação entre o universo da narração e a realidade tangível. A estética do nouveau roman é extremamente visível em Marienbad em diversos aspectos: nas figuras de repetição presentes no filme (podemos citar o mantra entoado pelo narrador na sequência de abertura ou as repetições de fala, de movimentos de câmera, de situações etc.), nos procedimentos de fragmentação e de quebra de continuidade (a mixagem de som, os diálogos “recortados” dos personagens; a alternância por vezes abrupta de voz off e in; a imobilização dos personagens em determinados momentos; a montagem que opera uma mudança repentina de cenário durante um diálogo ou monólogo tido como único etc.).
Você estava com medo. Você estava com medo, você sempre teve medo, mas eu amei seu medo naquela noite.
O Ano Passado em Marienbad se passa em um luxuoso palácio/spa/hotel. Nele, três personagens se destacam. Eles não são nomeados no filme e, no roteiro publicado posteriormente, eles são identicados apenas por letras. Assim, vemos uma bela mulher “A” (Delphine Seyrig) que vagueia pelo castelo, o narrador-personagem “X” (Giorgio Albertazzi), que a persegue e insiste que eles se encontraram no ano anterior, e “M” (Sacha Pitoëff), o suposto marido/amante de “A”, um jogador inveterado. Uma relação de gato e rato se instaura entre “X” e “A”. Ele tenta convecê-la de que ela havia lhe pedido um ano para poderem fugir juntos. No entanto, a moça parece não se lembrar de que o conhece, nem da promessa feita.
Ao longo do filme, “A” tenta resistir e escapar, sem muita convicção, do assédio desse homem misterioso e insistente que não cessa de relatar o que os dois teriam vivido juntos em Marienbad. No filme, é impossível distinguir o que é verdade e o que é mentira, o que é invenção e o que é lembrança, o que é fruto da ficção e o que é fruto da memória. E não é só isso. Por vezes, não se pode dizer se o que é mostrado na imagem corresponde ao passado ou ao presente dos personagens ou ainda se o que vemos é, na verdade, a reconstituição operada pela imaginação/memória dos mesmos. É difícil também determinar as relações causais entre cada sequência e, por vezes, também sua cronologia. Essa completa indeterminação é a essência do filme. O espectador é convocado para viver um enigma, um quebra-cabeças irresolúvel.
Eu te observei, te deixando se debater um pouco. Eu te amei. Eu te amei. Havia algo nos teus olhos… Você era… viva.
Ainda que Marienbad seja um enigma sem solução, ele incita várias interpretações e questionamentos. É possível, por exemplo, ver no filme a reconstituição da atmosfera de um sonho ou de diversos sonhos recorrentes e interligados. Há uma dimensão onírica inegável no filme de Resnais. É possível também cogitar a hipótese de que o filme represente a tentativa de compreender/desvendar um trauma, ou um acontecimento traumático, e que “X”, agindo como um terapeuta, tenta fazer com que “A” tome consciência de uma experiência reprimida pelo seu inconsciente. Há ainda quem interprete o universo retratado pelo filme como sendo o limbo em que diversas almas ou fantasmas habitam. De fato, corpos impassíveis que vagam sem destino em um ambiente circunscrito e sombrio pode nos fazer pensar na imagem do limbo.
Certamente, a estrutura narrativa e a estética de Marienbad dá margem a diversas interpretações. É interessante constatar também que “X”, o narrador do filme, age como autor ou mesmo como diretor. Ele conta a história de “A” para ela mesma. Ao construir uma narração ele se torna, de uma certa forma, o alter ego do cineasta. É também inevitável aproximar o filme à dinâmica de um jogo, como aquele jogado por “M” diversas vezes ao longo da trama. “M” é imbatível no jogo. Diversos personagens ao seu redor criam teorias para desvendar o segredo do mesmo, mas tudo é inútil porque “M” sempre vence. O jogo de “M” funciona como uma metáfora do próprio filme e de sua narrativa. Muito se pode dizer sobre Marienbad, de nada adiantará, afinal ele continuará um mistério.
Você me pediu para deixar-lhe por um ano inteiro talvez para me testar, talvez para me cansar, ou para que você pudesse me esquecer. Mas o tempo nada significa. Eu venho agora te encontrar.
O Ano Passado em Marienbad não somente é intelectualmente instigante como é visualmente arrebatador. Tudo é deliberado, nada é por acaso. Impressiona o apuro na composição dos quadros (as imagens que se refletem nos espelhos, a simetria dos objetos, a posição dos personagens etc.) e todas as escolhas artísticas efetuadas pelo diretor. A começar pelo cenário escolhido: o filme se passa num elegante palácio, grandioso, ricamente decorado, com pinturas, imensos espelhos e grandes jardins à la française. Três locações foram utilizadas para realizar o filme: os castelos de Schleissheim, Nymphenburg e Amalienburg, na Alemanha. A direção de arte é primorosa, assim como a belíssima fotografia em preto-e-branco. E o que dizer do belíssimo figurino? Sem dúvida, ele exerce um papel fundamental na composição da personagem de Delphine Seyrig, que a exemplo do que faz em India Song, surge como a própria encarnação da beleza. O visual da atriz foi inspirado no de Louise Brooks, musa do cinema mudo. O ator italiano Giorgio Albertazzi brilha no papel de “M” e Sacha Pitoëff é uma presença estranha e intrigante na tela.
Muito se falou e muito ainda se falará sobre O Ano Passado em Marienbad. Assim são as grandes obras de arte. É interessante e revelador o que os próprios autores falaram sobre esse filme. Para Robbe-Grillet, “todo o filme, na verdade, é a história de uma persuasão: ele [o filme] lida com uma realidade que o herói cria a partir da sua própria visão, a partir das suas próprias palavras”. Já Resnais afirmou: “Para mim, o filme é uma tentativa, muito crua e primitiva, de se aproximar da complexidade do pensamento e dos seus mecanismos”.
O terreno da mansão era um tipo de jardim à francesa sem árvores, flores, ou qualquer tipo de vegetação. Pedregulhos, pedras, mármore, a linha reta… superfícies sem mistério. Parecia, num primeiro olhar, impossível de se perder naquele lugar. Num primeiro olhar. Entre os caminhos retilíneos, entre as estátuas de gestos imóveis e as estruturas de granito, onde você estava, agora, se perdendo para sempre, na noite tranquila, sozinha comigo.
LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.
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