BORIS : Por que você quer dançar?
VICTORIA : Por que você quer viver?
BORIS: Eu não sei exatamente o porquê… mas EU PRECISO.
VICTORIA: Essa é a minha resposta também.
“Nem o melhor mágico do mundo pode tirar um coelho da cartola se já não existir um coelho na cartola.”
Os Sapatinhos Vermelhos é certamente a obra mais famosa da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, conhecidos como The Archers (os Arqueiros). Ainda que o musical de 1948 seja uma obra-prima admirada no mundo inteiro, seus realizadores nunca alcançaram a fama e o reconhecimento internacionais de outros diretores britânicos da mesma época, como Alfred Hitchcock, David Lean e Carol Reed. A bela e pouco conhecida filmografia dos Arqueiros merece definitivamente ser descoberta pelo grande público.
Powell e Pressburger trabalharam juntos pela primeira vez em 1940, no filme Contraband (1940). Em 1943, eles criaram sua própria companhia, a Archers Film Productions.
Os filmes da dupla costumam contar com o letreiro “Produzido, dirigido e escrito pelos Arqueiros”. Ainda assim, muitos especialistas apontam uma certa divisão de tarefas: Powell seria incumbido de grande parte da direção dos filmes, enquanto Pressburger estaria mais envolvido com a elaboração do roteiro, com a produção e com a edição dos longas-metragens. Dentre os frutos dessa parceria, destacam-se Paralelo 49 (1941), E Um de Nossos Aviões Não Regressou (1942), Coronel Blimp - Vida e Morte (1943), Neste Mundo e no Outro (1946), Narciso Negro (1947) e Os Contos de Hoffmann (1951).
Powell e Pressburger também fizeram muitos trabalhos “solos”. O primeiro escreveu diversos roteiros para outros diretores e dirigiu apenas um filme sozinho, Twice Upon a Time (1953). O trabalho mais conhecido de Powell fora dos Arqueiros é, sem dúvida, A Tortura do Medo (1960), um filme cult extremamente controverso que é hoje considerado uma obra-prima por alguns críticos.
“Não se esqueça: uma grande impressão de simplicidade só pode ser alcançada pela agonia do corpo e do espírito.”
Powell e Pressburger são dois dos maiores nomes do cinema britânico e o trabalho dessa dupla influenciou grandes diretores dentro e fora do Reino Unido. Não é de se espantar, por exemplo, que Os Sapatinhos Vermelhos tenham inspirado Vincent Minnelli e Gene Kelly na realização do clássico hollywoodiano Sinfonia de Paris (1951). A sequência de balé que encerra o musical americano é um filho legítimo e assumido da obra-prima dos Arqueiros. Dizem, inclusive, que Gene Kelly fez os executivos da MGM assistirem a Os Sapatinhos Vermelhos algumas vezes e, somente assim, conseguiu convencê-los a incluir o monumental número de dança em Sinfonia de Paris.
“Uma bailarina que depende dos duvidosos confortos do amor humano nunca poderá ser uma grande bailarina. Nunca.”
O trabalho de Powell e Pressburger influenciou não somente seus contemporâneos, como serviu de inspiração para gerações posteriores. Martin Scorsese, por exemplo, é fã incondicional do trabalho dos Arqueiros e não é segredo para ninguém que Michael Powell é um de seus diretores prediletos. Segundo Scorsese, o conjunto de trabalhos da dupla desde o final dos anos 30 até o início dos anos 50 corresponde ao “mais longo período de cinema subversivo em um grande estúdio”. Sobre o seu encontro com o ídolo, no final dos anos 70, ele disse:
“Ele estava muito calado e não sabia o que pensar de mim. Eu tive que lhe explicar que o seu trabalho foi uma grande fonte de inspiração para toda uma nova geração de cineastas: eu, Spielberg, Paul Schrader, Coppola, De Palma. Nós falávamos muitas vezes de seus filmes em Los Angeles. Eles foram uma força vital para nós em um momento em que os filmes não eram necessariamente disponíveis de imediato. Powell não tinha ideia de que tudo isso estava acontecendo."
“A música é tudo que importa. Nada além da música.”
O diretor de Taxi Driver viu Os Sapatinhos Vermelhos no cinema quando tinha nove anos e desde então apaixonou-se pela sensibilidade cinematográfica da dupla britânica. O diretor chegou a afirmar que Os Sapatinhos Vermelhos é um dos filmes em cores mais bonitos de todos os tempos. Em 2009, quase 20 anos depois da morte de Powell, Scorsese apresentou em Cannes a versão restaurada do musical.
A relação do diretor americano com os Arqueiros não se restringe a uma simples admiração. Scorsese é um dos grandes defensores e divulgadores da obra da dupla, subestimada por muitos e ainda pouco estudada. Outro detalhe interessante: a premiadíssima montadora Thelma Schoonmaker, parceira habitual de Scorsese, foi a terceira e última esposa de Powell.
“A tristeza vai passar, acredite. A vida é tão sem importância. E a partir de agora, você vai dançar como ninguém jamais dançou”.
Os Sapatinhos Vermelhos conta a história de Victoria Page (Moira Shearer), uma jovem bailarina que sonha em se tornar profissional. Certa noite, ela encontra o enigmático Boris Lermontov (Anton Walbrook), diretor de uma famosa companhia de dança. Lermontov logo percebe o talento da jovem e a chama para se juntar a sua companhia. A bailarina vira uma das estrelas do Ballet Lermontov. No entanto, tudo vira de cabeça para baixo quando ela se apaixona por Julian Craster (Marius Goring), o compositor de “Os Sapatinhos Vermelhos”. O autoritário Lermontov exige que a moça se dedique exclusivamente à dança. Dividida entre o amor de um homem e a paixão pela dança, Victoria terá um destino trágico.
Os Sapatinhos Vermelhos é uma belíssima fábula sobre a doação incondicional de um artista a sua arte. O filme, que é também uma homenagem ao grande coreógrafo russo Sergei Diaghilev, é inspirado em um conto de fadas do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen. Em uma cena do filme, Lermontov conta à bailarina a história de Os Sapatinhos Vermelhos:
“É a história de uma jovem que é devorada pela ambição de ir a um baile com um par de sapatos vermelhos. Ela recebe os sapatos e vai para ao baile. Por um tempo, tudo vai bem e ela está muito feliz. No final da noite, ela está cansada e quer ir para casa, mas os sapatos vermelhos não estão cansados. Na verdade, os sapatos vermelhos nunca estão cansados. Eles a fazem dançar na rua, sobre as montanhas e vales, através de campos e florestas, de noite e de dia. O tempo passa rapidamente, o amor passa rapidamente, a vida passa rapidamente, mas os sapatinhos vermelhos continuam.”
“Eu quero criar para fazer algo grande de algo pequeno, para fazer uma grande bailarina de você. Mas, primeiro, tenho que lhe perguntar: o que você quer da vida? Para viver? - DANÇAR.”
São muitas as qualidades que fazem de Os Sapatinhos Vermelhos uma obra-prima. Esteticamente arrebatador e brilhante no uso das cores, o filme pode ser visto como a simbiose perfeita de diversas manifestações artísticas como a música, a dança e a pintura. O musical é, antes de tudo, uma exaltação do poder da arte. Além de incríveis números de dança, inspirados na obra de Diaghilev, o filme conta com a bela fotografia de Jack Cardiff, um dos grandes diretores de fotografia do cinema inglês. O elenco, por sua vez, é comandado pela escocesa Moira Shearer, exímia bailarina que conquistou fama internacional com o filme e atuou em outras cinco produções para o cinema. Já o austríaco Anton Walbrook interpreta Boris Lermontov, um personagem fascinante, obsessivo e dominador.
O grande trunfo de Powell e Pressburger é o de combinar fantasia e realismo, o universo do sonho e o mundo da dança. Em certos momentos, o filme vira a mais a bela e pura abstração: tudo é movimento, ritmo e música. É admirável a maneira com que os Arqueiros traduzem em linguagem cinematográfica a essência do conto de fadas de Hans Christian Andersen. Eles fazem algo parecido com a ópera de Offenbach, no sensacional Contos de Hoffmann (1951). Esses dois filmes representam provavelmente o auge do apuro técnico no cinema dos Arqueiros.
Os Sapatinhos Vermelhos foi indicado a cinco Oscars, incluindo o de Melhor Filme, e levou o de Melhor Direção de Arte e o de Melhor Trilha Sonora, para o grande compositor Brian Easdale (outro parceiro habitual dos Arqueiros). O filme foi um sucesso dentro e fora do Reino Unido. Powell e Presspurger nos oferecem através deste clássico um espetáculo único, uma experiência cinematográfica intensa e inspiradora.
LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.