“Mame kissed a buyer from out of town
That kiss burned Chicago down
So you can put the blame on Mame, boys
Put the blame on Mame.”
Johnny Farrell: “Eu a odiava tanto que não conseguia tirá-la da minha cabeça por um só minuto!”
Nunca houve uma mulher como Gilda! Já dizia o pôster do filme de 1946, dirigido por Charles Vidor. Rita Hayworth, no auge da sua beleza, encarnou a personagem mais importante da sua carreira e uma das mais célebres femmes fatales da história do cinema. Se especializando nesse tipo de personagem, a atriz realizou outro clássico noir, no ano seguinte, A Dama de Shangai, dirigido e estrelado por Orson Welles, com quem a estrela hollywoodiana foi casada por cinco anos. A década de 40 foi o período de ouro da carreira da atriz, quando ela se firmou como um dos maiores símbolos sexuais de Hollywood. Foi, no entanto, Gilda que fez com que Hayworth se tornasse um verdadeiro mito. Hayworth se casou cinco vezes, sendo uma delas com o príncipe Aly Khan. Ela se tornou assim a primeira estrela de cinema a se tornar uma princesa (Grace Kelly é a mais famosa). Mas esse casamento, como todos os outros, não durou muito tempo. A atriz chegou a confessar certa vez: “Todos os homens que conheci se apaixonaram por Gilda e acordaram comigo”.
Johnny Farrell: “Estatísticas mostram que existem mais mulheres no mundo do que qualquer outra coisa. Exceto insetos”.
Sem dúvida, Gilda possui algo a mais, algo que nem todos os filmes noirs apresentam. Em Gilda, existe uma tensão sexual latente e sempre presente, tensão que permeia as relações do trio de protagonistas. Talvez pudéssemos afirmar que Gilda é um filme sobre desejo e repulsa. Claro que existe uma trama, envolvendo mistério e crime, mas essa trama é apimentada por uma atmosfera de puro erotismo. A antológica cena do semi-striptease de Gilda é apenas um exemplo de como o filme é altamente erótico sem, no entanto, infligir os rígidos códigos de censura da época. O gesto da retirada da luva acaba por ser infinitamente mais sensual do que um completo striptease. Uma das qualidades do filme está justamente nesse jogo entre o que é revelado e o que é apenas sugerido. É o que está velado, é o que está subentendido nos diálogos enigmáticos e dúbios, nos comportamentos ambíguos dos protagonistas, que desperta a imaginação do espectador e faz desse clássico um exemplar tão instigante.
Gilda: “Eu não consigo nunca fechar meu zipper. Talvez isso queira dizer algo, não acha?”
Gilda se passa na Argentina. Johnny Farrell (Glenn Ford), um aventureiro americano de caráter duvidoso, começa a trabalhar para um sinistro dono de cassino e simpatizante nazista, Ballin Mundsun (George Macready). Para a surpresa de Johnny, a nova esposa do patrão é seu amor do passado, Gilda (Rita Hayworth). A partir de então, um triângulo amoroso se forma. A sinopse de Gilda lembra estranhamente Casablanca: um americano expatriado que reencontra a mulher com quem teve um caso no passado, em terras estrangeiras, com direito à presença de nazistas como no clássico de 1942, um plano de fuga e um cassino que muito lembra o Bar do Rick.
Gilda é um gêmeo perverso de Casablanca. O relacionamento de Johnny e Gilda não é movido por sentimentos nobres como o de Rick (Humphrey Bogart) e Ilsa (Ingrid Bergman). A dinâmica de amor e ódio que se estabelece entre os dois personagens do filme de 1946 é muito mais venal e doentia do que a relação do famoso casal de Casablanca. Gilda também não possui a doçura de Ilsa e não assume o papel de vítima das circunstâncias como a heroína interpretada por Ingrid Bergman. Gilda é uma mulher sexualmente agressiva, voluptuosa, perigosa e vampiresca, que desafia a noção clássica de heroína.
Ballin a Johnny: “Você ficaria surpreso de ouvir uma mulher cantando na minha casa”.
Gilda comanda não só o olhar do espectador, como o dos seus dois amantes. Como uma força da natureza, ela é o centro das atenções quando está em cena. A aparição da femme fatale é orquestrada magistralmente. Ela ocorre após mais de 15 minutos de projeção. Primeiro ouvimos a voz da personagem, depois vemos a reação de Johnny e Ballin à visão da musa e, aí sim, ela surge na tela, fazendo um movimento inesperado, jogando os cabelos para trás. Assim nasce o mito. Exuberante e sensual, a protagonista é também um mistério a ser desvendado. Ela talvez possa ser considerada como uma manifestação da fantasia e do imaginário masculinos. Afinal, como afirmou certa vez Rita Hayworth, não é possível ser Gilda 24 horas por dia.
Paradoxalmente, Gilda assume o papel de objeto sexual, mas também é uma personagem moderna, livre sexualmente, em uma época de extrema repressão sexual. A canção “Put the Blame on Mame” se tornou um grande sucesso graças à performance de Rayworth (dublada por Anita Ellis). A irônica letra da canção fala justamente da mulher vista como a causa de todos os males. Nos anos 40, o nome Gilda passou a ser sinônimo de “mulher selvagem”. Também foi o apelido dado à primeira bomba atômica jogada em Bikini Atoll, ilha usada para testes nucleares pelos norte-americanos.
Johnny a Ballin: “You must lead a gay life!”
Mas nem tudo é sobre Gilda. A relação entre Ballin e Johnny é, no mínimo, curiosa. Não são poucos os estudiosos e críticos que apontam certo homoerotismo no relacionamento extremamente próximo e ambíguo dos dois principais personagens masculinos. O primeiro indício desse provável homoerotismo ocorre no início do filme: Ballin está segurando um objeto fálico e Johnny exclama: "You must lead a gay life" (Você de levar uma vida gay/alegre). A utilização da palavra “gay”, que comporta duas significações, permite assim duas leituras. Tanto Charles Vidor quanto Glenn Ford afirmaram posteriormente que, durantes as filmagens, eles não cogitaram a hipótese de que os dois personagens pudessem ser homossexuais. No entanto, o subtexto gay e a relação potencialmente homoafetiva de Ballin e Johnny fazem com que o triângulo amoroso do filme seja ainda mais complexo e intrigante.
Nunca houve uma mulher como Gilda!
Gilda é o filme mais célebre de Charles Vidor, diretor de origem húngara que, apesar de ter tido uma prolífica carreira nos Estados Unidos, é lembrado hoje em dia quase exclusivamente pelo clássico de 1946. A forma com que o filme aborda aspectos da sexualidade humana, a maneira provocativa com que ele lida com um triângulo amoroso não convencional e a ousada representação da femme fatale fazem de Gilda um exemplar único no cinema clássico americano. As qualidades do filme em termos de estilo se sobrepõem a uma trama pouco original. E nem mesmo o tradicional final feliz é capaz de obscurecer o caráter provocador desse clássico.
LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.