“É esse o meu projeto: filmar minha mão, com minha outra mão. Entrar no horror. Acho isso extraordinário. Tenho a impressão que sou um animal. Pior: sou um animal que eu não conheço!”
Os Catadores e Eu (2000)
Agnès Varda no início da carreira.
Agnès Varda nasceu em Bruxelas, em 1928, mas foi na França que consolidou seu trabalho como cineasta. Em mais de 50 anos de carreira, Varda construiu um belo percurso cinematográfico e, aos 84 anos, é o maior expoente feminino do cinema francês. Sua formação inicial foi em Belas Artes, tendo estudado pintura na escola do Louvre. Seu primeiro trabalho foi como fotógrafa. Da pintura e da fotografia, Varda herdou o olhar de esteta e o gosto pela composição, que estarão presentes em toda a sua obra. Incansável e curiosa, Varda logo se interessou pelo cinema, já que a fotografia lhe parecia um tanto quanto “muda”. Tendo como mentor o diretor Alain Resnais, ela aprenderia rapidamente o métier.
A estreia de Agnès Varda no cinema não poderia ser melhor. Em 1955, ela lança La Pointe Courte, um belo longa-metragem que desafia os códigos da narração. Nesse filme, tido como precursor da Nouvelle Vague, Varda justapõe dois fios narrativos diferentes e sem relação entre si e, através da montagem, ela cria analogias entre esses dois universos distintos. Ainda jovem e inexperiente, Varda seria vista, para sua própria surpresa, como uma das grandes pioneiras da Nouvelle Vague, ainda que nunca tenha feito parte desse grupo.
Agnès Varda em Os Catadores e Eu (2000)
A partir do seu primeiro sucesso, Agnès Varda construiu uma carreira extremamente prolífica e eclética. Entre curtas e longas-metragens, ela realizou documentários por encomenda, como O saisons, ô châteaux (1958), projetos mais pessoais, como os magníficos Os Catadores e Eu (2000) e As Praias de Agnès (2008), e filmes de ficção, como os clássicos As Duas Faces da Felicidade (1965) e Cléo das 5 às 7 (1962), sem nunca renunciar à sua liberdade criativa e sem jamais se curvar ao cinema comercial. Uma das características mais interessantes da filmografia de Agnès Varda é a maneira com que a cineasta alia a prática documentarista, com uma abordagem mais realista, e a prática ficcionalista. Assim, existe algo de documentário em seus filmes de ficção, como existe algo de construção ficcional em seus documentários.
Um dos filmes mais instigantes de Agnès Varda, que merecerá atenção especial nesta coluna, é Sem Teto Nem Lei (1985), longa-metragem de ficção. O script inicial do filme tinha duas páginas. Segundo a cineasta, a inspiração para o projeto veio do inverno e daqueles que estão expostos a ele, sem abrigo. O filme conta a história de Mona, uma jovem recém-saída da adolescência, que adota um estilo de vida nômade e que, com sua tenda, segue um caminho errante no sul da França, encontrando várias pessoas pelo caminho. Sem Teto Nem Lei é um verdadeiro mosaico de pontos de vista, com uma estrutura episódica, organizada a partir dos encontros feitos pela protagonista. A estrada é o cenário principal do filme e o habitat natural de Mona. Varda exibe paisagens de uma França não glamurizada, por vezes decadente e cinzenta.
Sandrine Bonnaire como Mona, em Sem Teto Nem Lei (1985)
O filme se inicia já com a morte da protagonista e, através de um longo flashback, acompanhamos os últimos momentos da vida de Mona. O filme é organizado em torno dos testemunhos dados pelas pessoas que conheceram a personagem (o que o aproxima do documentário); de 12 belos travellings que atravessam a narração; e da ação propriamente dita. A heterogeneidade formal e a descontinuidade geram uma tensão na estrutura narrativa do filme, que foge do convencional.
Além de ser narrativamente e tecnicamente um filme curioso e instigante, Sem Teto Nem Lei é enriquecido pela presença de sua protagonista. Mona é uma figura completamente marginal, uma anti-heroína difícil, senão impossível de se definir. O filme parece responder à questão: como representar um personagem que se recusa a se revelar? Mona é uma figura sem lugar no mundo, trágica, arredia, enigmática, contraditória, antipática. Grande parte do charme dessa bela personagem está no seu caráter insondável. Varda parece criar um verdadeiro mito, uma figura da qual só podemos nos aproximar através do discurso dos outros. Na pele da fascinante Mona, temos a bela e talentosa atriz Sandrine Bonnaire.
Agnès Varda, em cena de As Praias de Agnès (2008)
Sem Teto Nem Lei é apenas um exemplo do quão interessante e único é o cinema de Varda. Cada filme dessa cineasta é uma descoberta que mobiliza a inteligência e a sensibilidade do espectador. Agnès Varda é uma grande desbravadora do Outro. Esse Outro, por vezes, é ela mesma como podemos ver nos tocantes As Praias de Agnès e Os Catadores e Eu. O cinema de Varda, seja de documentário ou ficção, é um retrato sensível e, por vezes poético, do mundo real e de pessoas reais.